Neste tempo em que o moralismo é a base da argumentação de todos, não importando seu espectro político. Em que todos querem ser os donos da verdade, de uma moral superior, altruísmo iluminado, anjos infalíveis, príncipes, lúcidos donos da verdade, que nunca erraram, nunca se equivocaram, nunca pareceram ridículos, e mesmo que o fossem sobre-humanos isso não bastaria como prova ou argumentação sobre algo. Onde gente movida pela mesquinhez humana, aquela que está em mim, em você, e que não sejamos hipócritas em esconder, enche a boca para dizer que só se importa com "os outros". Uma época onde os discursos são muitos, mas a forma é uma só: tacanha, moralista, conservadora, seja carregada de discurso de esquerda ou de direita. Provavelmente você não sabe do que eu estou falando neste desabafo, e não se incomode tanto, apenas assista a esse momento da maior dignidade da dramaturgia televisiva brasileira, "Poema em Linha Reta", de Fernando pessoa, recitado pelo personagem de Osmar Prado (indicação de minha companheira):
As vezes a forma carrega tanto ou mais conteúdo que o discurso.
As aulas...
Hoje fechei as notas, digitei naquele sistema capenga do Professor online. Talvez seja essa a parte mais chata de ser professor. Mas o que salva são os alunos e as surpresas que eles nos trazem. na última semana do primeiro bimestre, algumas turmas realmente me surpreenderam nas aulas de "Tocata aberta", onde eu levo quantos dos meus instrumentos musicais eu posso para a escola e deixo eles tocarem e brincarem a vontade. São aulas que agora vou dar um tempo, até por que muitos alunos não estavam interagindo quando não sabotando a aula e nada fazendo. Mas, com os que se interessavam, foi lindo, em especial na última semana, onde saíram verdadeiras tocatas, mesmo que os alunos tenham quase nenhuma prática com os instrumentos, ainda assim conseguiram tirar som da simplicidade, e juntos improvisamos instrumentais muito interessantes. Queria ter gravado (fica a dica pras próximas vezes, ter um gravador compacto que grave em MP3 sempre ligado para registrar estes momentos)
Nas semanas anteriores repetimos a atividade de análise de uma música. Ouvimos e analisamos a primeira faixa da opera Carmina Burana, de Carl Orff, "O Fortuna". Orff compôs a ópera se apropriando de poemas cantados do século XIII. Esses tipos de menestreis, músicos de rua, andarilhos pedintes, fanfarrões e boêmios que cantavam em troca de comida, bebida, ou abrigo, eram clérigos desempregados, treinados nas artes e em Latin, chamados genericamente de Goliardos. Frequentemente cantavam canções ironizando o alto clero, falando de seus amores mal correspondidos, sobre bebidas, sua falta de virtude e azar.
Bom, acho que vou colar aqui a estrutura da atividade, pra ficar mais claro o que aconteceu:
1) Conteúdo da forma: os alunos ouviram a música sem se importar com a letra, prestando atenção no instrumental, anotando os sentimentos, imagens e cenários que a música lhes despertava. Depois eles falaram pra turma o que tinham sentido, e curiosamente todos sentiram cosias parecidas, que a música era "opressora", "que nos sentíamos pequenos diante dela", música de terror, de guerra, e coisas semelhantes.
2)Conteúdo do discurso (Depois de copiaram a letra traduzida da música do quadro, lemos juntos frase por frase, e construímos um entendimento sobre o que tratava a letra: um lamento de um pobre Goliardo (um musico clérigo andante e desempregado de meados do séc. XIII) que cantava sobre volatilidade da deusa da Fortuna e de sua má sorte.
3) Articulando o conteúdo da forma e o conteúdo do discurso: Perguntei aos alunos como eles fariam o instrumental da música, que ritmo ou tipo de instrumentos, caso eles quisessem dar a ela um tom cômico ou irônico, e por que de sua escolha. As respostas claro que variavam, desde que os que colocaram qualquer coisa pra terminar a tarefa, até os que realmente tentaram articular a forma e o discurso.
Desta terceira parte, me marcaram duas respostas em especial: uma que o aluno dizia que faria uma música no estilo de desenhos animados, e outra de uma aluna que detalhava os instrumentos e jeito de cantar dos repentistas dos interiores deste Brasil. O interessante é que, não sabe minha aluna (mas saberá) que esta é uma das descrições dos Goliardos: compunham e se apresentavam como músicos de rua, e adaptavam suas canções ao gosto do freguês, de forma semelhante aos repentistas nordestinos.
Só para pontuar um detalhe: em todo momento eu mediei esta análise: perguntava, estimulava os alunos a falarem, direcionava a atividade colocando os subtítulos sobre os quais eles deviam completar com sua sensibilidade. Fiquei realmente satisfeito com os resultados destas atividades, que de quebra ainda serviram de avaliação pra fechar as notas dos alunos (aquela parte chata de nosso trabalho).
Boa parte das informações, além da tradução poética da letra original em Latin, eu peguei deste livro:
Carmina Burana: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo Spina. edição bilingue: latin-português. Introdução e tradução de Maurice van Woensel. São Paulo :Ars Poetica, 1994, 216ps
Ó Fortuna (Carmina Burana Nº17)
Ó Fortuna, tal a lua, uma forma variável.
Sempre enchendo ou encolhendo: ó que vida execrável!
Pouco duras, quando curas de nossa mente as mazelas.
A pobreza, a riqueza, tu derretes ou congelas.
Bruta sorte, és de morte: tua roda é volúvel.
Benfazeja, malfazeja, toda sorte é dissolúvel.
Disfarçada de boa fada, minha ruína sempre queres;
simulando estar brincando minhas costas nuas feres.
Gozar saúde, mostrar virtude: isto escapa a minha sina;
opulento ou pulguento, o azar me arruína.
Chegou a hora, convém agora o alaúde dedilhar;
a pouca sorte do homem forte devemos todos lamentar
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