segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Criar jogos é “apenas” arte: Comentário sobre o texto de Brendan Keogh traduzido por Janos Biro.

(English on the bottom)

Criar jogos é “apenas” arte: Comentário sobre o texto de Brendan Keogh traduzido por Janos Biro.


Hoje eu li o texto mais lúcido que já encontrei na área de desenvolvimento de jogos. Ele não só reafirma algumas de minhas convicções nessa jornada de 12 anos como joguinista, mas também elucidou alguns pontos para seguir com mais clareza e tranquilidade nesse caminho.

Recomendo fortemente a leitura do texto, no link a seguir, e se assim desejar, caminhar comigo em meio a minhas reflexões:

https://contrafatual.substack.com/p/nao-ha-jogos-demais-todas-as-pessoas-devem-ser-encorajadas-a-faze-los-ou-jogos-sao-apenas-arte

Sei que utilizar a si mesmo como “exemplo” não é algo muito “científico”. Mas, em se tratando da área de artes, e na própria prática que nós encontramos paralelos entre nosso fazer e o fazer dos demais artistas. Eu não quero com isso servir de “exemplo” pra nenhum desenvolvedor (mas talvez o queira como ser humano, talvez). O que quero é mostrar que algumas coisas servem para mim, e talvez também sirvam para alguém mais.

Se você leu a tradução de Janos Biro para o texto de Brendan Keogh, e espero que sim, então vai acompanhar os pontos que pretendo colocar. A começar citando a síntese mais importante do texto:


"Criar jogos não é fundamentalmente uma atividade econômica".


Como Brendan coloca claramente: fazer poesia, criar uma música, criar uma imagem, não é fundamentalmente uma atividade econômica. Por ventura, para algumas pessoas, pode se tornar sua atividade de sobrevivência econômica nesse mundo (como tem se dado no meu caso). Foi por motivos históricos, em grande medida tensionados pela indústria do videogame, que a prática de "criar videogames" tem sido vista não como uma atividade criativa humana, tal qual as demais, mas como primeiramente um "empreitada" do tipo "empreendedora" comercial no entretenimento.

Eu preciso dizer que essa questão sempre me preocupou. Quem me acompanha sabe que eu frequentemente reforço que o game, para mim, é uma linguagem estética assim como são os quadrinhos, o cinema, a literatura, e demais... em outras palavras, é arte, no sentido amplo de atividade criativa humana. E apesar de ter optado, de 7 anos para cá, sobreviver dessa arte e ter ela como meu "ofício", eu sempre parto da vontade de criar. Tanto que sou avesso a analises de tendência de mercado. Eu faço games retrô pelos meus próprios motivos, alheio a modismos e "trends".


Alguns dos jogos mais vendidos de todos os tempos.


Já atempos que me perguntava do porque com os games essa noção das pessoas sobre arte era diferente do que é em outras linguagens. E eu via na indústria, no como ela se "apropria" da autoria dos jogos, como um dos motivos. Brendan deixa mais claro sobre a artificialidade desse processo histórico. E de fato, vejam como a indústria por muito tempo forçou a ausência de créditos nos games, proibindo os desenvolvedores de colocar seu nome (tem o caso famoso dos desenvolvedores do Adventure de Atari escondendo seus nomes numa tela de créditos secreta). Ou posteriormente, proibiam os nomes reais, obrigando eles a colocarem apenas apelidos, pseudônimos (muitos dos jogos da snk no Neo Geo). E mesmo quando a indústria assume um produto como algo "autoral", no final das contas todos os direitos são da empresa, por que antes de ser trabalho criativo aquilo é um produto. Shigeru Miyamoto só é alçado como grande autor de jogos e personagens da Nintendo por que seu nome se tornou um "asset", ele tem valor de capital simbólico para a empresa. Mas no final das contas, a empresa é dona de toda a criação, se ele fosse embora da Nintendo perderia qualquer controle sobre seus personagens.

Acho certeiro, e me tornou muito mais claro e sintético, a afirmação de Brendan de que é preciso assumir a "banalidade" da criação de games. Criar games é "apenas arte". Não no sentido de desvalorizar a criação, mas no sentido de humanizá-la. Criar games é uma atividade criativa humana, que pode existir independente de se existir um "mercado". E é por isto que ele diz que "jogos não são software". O game utiliza o software como parte de seu suporte, assim como uma pintura utiliza a tela e as tintas. O software é um meio, não um fim.

Suporte (parabrisa automotivo), e materiais (poeira) "inusitados" em um trabalho de arte.


Criar jogos é então um trabalho criativo, e eu concordo plenamente que é preciso deixar isto claro à aspirantes e alunos de desenvolvimento de games. E isso não significa desvalorizar seu trabalho. Eu digo isso com a propriedade de minha prática, que tem sido até bastante consciente, também graças ao diálogo constante com o Trabalho do Pedro Paiva, e quero pegar nosso trabalho como forma de ilustrar isso. Mas me siga com esse trecho do texto de Brendan:

"Algo que costumava dizer para mim mesmo quando era um escritor freelancer: não trabalhe de graça, mas não trabalhe apenas por dinheiro. Havia uma corda bamba que eu queria andar entre respeitar meu próprio trabalho e não reduzir o valor do meu próprio trabalho a um valor puramente econômico"

Acho que isso resume bastante de minha prática. Quando iniciei a 12 anos atrás, eu ainda não pensava em "sobreviver" de minha arte. Até 7 anos atrás, eu sobrevivia como professor de artes em escolas públicas, até criando jogos com meus alunos, e nas horas vagas seguia criando meus games simplesmente por que eu sentia que precisava. Nessa época, distribuía meus games gratuitamente. Fazia eles da mesma forma como anos antes eu desenhava ou criava e gravava minhas próprias músicas. Criava por que viver para mim é criar arte.

De 7 anos para cá mudei de perspectiva, mas me esforcei para não criar ilusões, tentando encontrar meu próprio caminho autoral. Acreditei sim por um momento na falácia de que colocar meu game na Steam Coisa que fiz em 2017) seria garantia de vendas e sobrevivência. Pura miragem, mas que logo tomei consciência, até por conta da prática que mantive de avaliar meu trabalho, tomando meu tempo para escrever de forma ensaística e honesta comigo mesmo em meu blog. Prática essa que era reforçada pelo contato com o Pedro Paiva, que sempre fez coisa semelhante em seu blog.

Captura do Blog do Pedro Paiva (link ao final do texto)


Então o que tenho feito é seguir meu próprio caminho no meio do retro game, nicho do nicho dos computadores de 8 bits, mas onde sobrevivido e realizado minhas pretensões criativas. Sempre escuto de pessoas nos eventos que atendo "seu game devia estar na Steam, no Xbox, etc..." eu só acho engraçado, por que a pessoa não faz ideia da clareza que eu tenho do caminho que trilho. Eu estou onde estou por escolha própria, não só por falta de outras oportunidades. E isso tem tudo a ver com minha opção de "sobrevivência" econômica no meio do desenvolvimento de games.

Eu costumo dizer que o que eu faço é um "game artesanal". Não no sentido "gourmet", mas num sentido mais marxista: diferente do trabalhador alienado, eu tento ser o artesão que colhe a matéria prima, fabrico meu produto em todas as suas etapas, e depois vou até a feira (tanto virtual quanto presencial) vender e mostrar minha arte. E é por que tenho essa noção de valorizar aquilo que meu trabalho tem de mais potente: sua dimensão artística e cultural. Claro, eu estou "vendendo meu peixe". Mas isso também me deixa prevenido com certas ilusões de grandeza, sem ao mesmo tempo desvalorizar meu ofício.

Registros de minha participação no Açor, Festa da Cultura Açoriana

Sendo bem franco, hoje em dia, depois de muito trabalho e esforço também na parte comercial de meus jogos, eles me rendem em média apenas 1/2 da minha renda básica. A outra metade vem de trabalhos freelance no meio do nicho de homebrew/retro games. Como qualquer outro artista, como um poeta, um pintor, cineasta, ou músico que também sou, eu sei que não é possível, ou muito raro, sobreviver exclusivamente de sua arte. Ainda mais num país de terceiro mundo onde a maioria esmagadora das pessoas gasta quase toda sua renda com moradia, transporte e alimentação. Então, minhas estratégias na parte econômica são as de um artista "qualquer", banal, como diria Brendan.

Queria dizer também que, enquanto professor que realizou um total de 11 jogos junto com seus alunos, em atividades de 6 meses e que me davam uma trabalheira imensa muito mal remunerado, eu já tinha uma noção a respeito dessa dimensão do game como "apenas arte". Ou como eu sempre pensei, como uma linguagem estética igual a todas as outras. E reconheci isso naqueles idos de 2014 quando descobri o trabalho do Pedro Paiva, que fazia exatamente o mesmo. O Pedro ainda trouxe muitas ideias claras a respeito da coisa de levar os games até as pessoas através de fliperamas improvisados, mas isso é história para outro dia. Brendan agora me deixou mais lúcido que o que eu e o Pedro tentávamos, cada um do seu jeito, fazer à época, era exatamente isso: mostrar para nossos alunos do ensino regular que o game era "apenas arte", uma atividade de criação humana que você pode fazer apenas por que fazer lhe preenche sentido no tempo da vida.

Esses Games Proibidões, fruto do trabalho do Pedro como professor e seus alunos.

Para finalizar, queria mirar no problema que Brendan levanta da "curadoria" dos games. Esse é um problema pro qual nenhum de nós tem muita solução. O Pedro deu uma direção e pistas com o trabalho dos Fliperamas, algo que graças a ele eu tenho a perseverança de seguir fazendo. Mas isso ainda é uma atividade bem local. A verdade é que por conta do tal deus algoritmo os youtubers, resenhistas, mesmo que amadores a maioria, evita jogos que não estejam dentro de sua bolha e das "trends". Isso é um problema por que vicia e empobrece a curadoria. Já entra num campo que é também o da comunicação na internet, algo que me foge e não pretendo dar conta. Talvez a coisa deva começar pelos curadores se enxergar como críticos de cultura, não como gamers. Acho que as melhores resenhas de jogos meus foram de pessoas que se enxergaram assim, lembro bem de umas do Flilipe Veiga e alguns outros resenhistas que se sentiram estimulados pelo conteúdo cultural de meus games e encararam a resenha como um tipo de escrita literária. Mas fica aí o problema para quem é desta área tentar resolver, acho que isso já é demais pra minha cabeça.

Quanto ao tema principal, talvez minha sorte, e acredito que a do Pedro Paiva também, é que nós não viemos de uma formação nem em TI, nem em Desenvolvimento de Jogos Digitais, mas da Licenciatura em Artes Visuais. Viemos para a área de games com cabeça de artistas/pesquisadores críticos. Sou muito grato ao Janos Biro pela tradução do texto de Brendan. Sempre acreditei ser preciso reforçar esse aspecto do game como atividade criativa humana, e é bom contar com pessoas inteiradas no meio para tanto. eu sou meio isolado, apenas um artista criando aqui no meu canto e tentando sobreviver, mas ainda assim com a cabeça ativa e pensante.


Links:

https://contrafatual.substack.com/

https://menosplaystation.blogspot.com/

https://diarioartografico.blogspot.com/


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English:

Making games is “just” art: A commentary on Brendan Keogh’s text translated by Janos Biro.

Today I read the most lucid text I’ve ever encountered in the field of game development. It not only reaffirms some of my convictions along this 12-year journey as a game-maker, but it also clarified points that now allow me to move forward with more calm and clarity.

I strongly recommend reading the text at the link below, and if you wish, walking with me through my reflections:


I know that using oneself as an “example” is not very “scientific.” But when it comes to the arts, it is within our own practice that we find parallels between what we do and what other artists do. I don’t want this to serve as an “example” to any developer (though perhaps I do, as a human being). What I want is to show that some things work for me, and perhaps they might work for someone else as well.

If you’ve read Brendan Keogh’s text, and I hope you do had, then you will follow the points I intend to raise. Starting by quoting what I consider the text’s most important synthesis:

“Making games is not fundamentally an economic activity.”

As Brendan clearly states: writing poetry, composing music, creating an image, these are not fundamentally economic activities. By chance, for some people, they may become their means of economic survival in this world (as has been my case). It was for historical reasons, largely shaped by the videogame industry, that the practice of “making videogames” came to be seen not as a human creative activity like any other, but primarily as an “entrepreneurial” commercial venture within entertainment.

I must say this issue has always worried me. Those who follow me know I frequently insist that games, for me, are an aesthetic language just like comics, cinema, literature, and others… in other words, they are art, in the broad sense of human creative activity. And although I have chosen, for the past seven years, to make a living from this art, to make it my “profession”, I always begin from the desire to create. So much so that I avoid market trend analyses. I make retro games for my own reasons, indifferent to fads and “trends.”

Some of the best-selling games of all time.

For some time I wondered why, when it comes to games, people’s notion of art differs from what it is in other media. I saw in the industry, and in how it appropriates authorship, one of the reasons. Brendan makes the artificiality of this historical process much clearer. In fact, look at how the industry for many years suppressed credits in games, forbidding developers from putting their names (the famous case of the Atari Adventure developers hiding their names in a secret credits screen). Later, companies forbade real names, forcing developers to use nicknames or pseudonyms (as in many SNK Neo Geo games). And even when the industry frames something as “authorial,” in the end the company owns all rights, because before being creative work, it is a product. Shigeru Miyamoto is hailed as a great game and character creator at Nintendo because his name became an asset, a form of symbolic capital for the company. But ultimately the company owns everything: if he left Nintendo, even he would lose all control over his characters.

I find Brendan’s assertion that we must embrace the “banality” of game creation both accurate and clarifying. Making games is “just art.” Not in the sense of devaluing creation, but in the sense of humanizing it. Making games is a human creative activity that can exist independently of any “market.” And that is why he says “games are not software.” The game uses software as part of its support, just as a painting uses canvas and paint. Software is a medium, not an end.

Support (car windshield) and “unusual” materials (dust) in an artwork.

Thus, making games is creative work, and I fully agree that this must be made clear to aspiring developers and students. This does not devalue the work. I say this from the vantage point of my own practice, which has been quite conscious, thanks in part to my ongoing dialogue with Pedro Paiva’s work. I want to use our work to illustrate this. But follow this excerpt from Brendan’s text:

“Something I used to tell myself when I was a freelance writer: don’t work for free, but don’t work only for money. There was a tightrope I wanted to walk: respecting my own work without reducing its value to a purely economic one".

This summarizes much of my practice. When I started 12 years ago, I wasn’t thinking about “making a living” from my art. Until 7 years ago, I've maked a living as an art teacher in public schools (even creating games with my students) and in my spare time, I kept making my own games simply because I felt compelled to. At that time, I distributed my games for free. I made them the same way I had drawn or composed and recorded my own music years before. I created because, for me, living is creating art.

Seven years ago I shifted perspectives, but I worked hard not to harbor illusions, seeking my own authorial path. I did believe for a moment in the mirage that putting my game on Steam (which I did in 2017) would guarantee sales and survival. Pure illusion, which I quickly saw through, in part because I maintained the practice of evaluating my work, taking time to write honestly and essayistically on my blog. A practice reinforced by Pedro Paiva, who has long done the same on his blog.

Screenshot from Pedro Paiva’s blog (link at the end).

So what I’ve done is follow my own path in the retro-gaming micro-scene, the niche of niches - 8-bit computers - where I’ve managed to survive economically while fulfilling my creative aims. At events I always hear people say, “your game should be on Steam, on Xbox, etc…” I just find it funny, because the person has no idea how clear I am about the path I’m on. I am where I am by choice, not just by lack of opportunity. And this has everything to do with my economic approach to game development.

I often say what I make is “artisanal games.” Not in the “gourmet” sense, but in a more Marxist sense: unlike the alienated worker, I try to be the artisan who gathers raw material, crafts the product in every step, and then goes to the market (both virtual and physical) to sell and show my art. And because of this, I value the most powerful dimension of my work: its artistic and cultural dimension. Of course, I’m “selling my fish.” But this also keeps me grounded against illusions of grandeur, without devaluing my craft.

Records of my participation at Açor – Festa da Cultura Açoriana.

To be honest, after much work and effort (even on the commercial side)my games bring in only about half of my basic income. The other half comes from freelance work within the homebrew/retro scene. Like any other artist: a poet, painter, filmmaker, or musician, which I also am. I know it is impossible, or very rare, to survive exclusively from one’s art. Even more so in a third-world country where most people spend nearly all their income on housing, transportation, and food. So my economic strategies are those of an “ordinary,” even “banal,” artist, as Brendan would say.

I should add that, as a teacher who completed 11 games with my students over 6-month courses (an immense amount of underpaid work) I already had a notion of this “just art” dimension. Or, as I always thought, as an aesthetic language like any other. I recognized this back in 2014 when I discovered Pedro Paiva’s work; he was doing exactly the same thing. Pedro also brought many clear ideas about taking games directly to people through improvised arcades, but that is a story for another day. Brendan has now made me more aware that what Pedro and I were doing - each in our own way - was exactly this: showing our students that games are “just art,” a form of human creation you can pursue simply because it fills life with meaning.

These “Games Proibidões” (not alowed games), the result of Pedro’s work with his students.

To finish, I want to look at the problem Brendan raises about game “curation.” It’s a problem none of us has a real solution for. Pedro pointed in some directions with his Arcades project, something I’ve persisted in doing thanks to him. But it is still a very local activity. The truth is that because of the almighty algorithm, YouTubers and reviewers - most of them amateurs - avoid games outside their bubble or “trends.” This is a problem because it biases and impoverishes curation. This moves into the territory of online communication, which I cannot and do not want to address. Perhaps curators should begin by seeing themselves as cultural critics, not “gamers.” I think the best reviews of my games came from people who saw themselves that way. I remember reviews by Filipe Veiga and others who were moved by the cultural content of my games and approached reviewing as a form of literary writing. But this is a problem for those in that field to solve, it’s too much for my head.

As for the main theme, perhaps my luck - and Pedro Paiva’s, I believe - is that neither of us comes from Computer Science or Digital Game Development, but from Visual Arts. We entered games with the minds of artists and critical researchers. I am very grateful to Janos Biro for translating Brendan’s text. I have always believed it necessary to reinforce this aspect of games as human creative activity, and it is good to count on people who understand the field. I am somewhat isolated, just an artist creating in my corner and trying to survive: but still with an active and thoughtful mind.

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