(English on the bottom)
Criar jogos é “apenas” arte: Comentário sobre o texto de Brendan Keogh traduzido por Janos Biro.
Hoje eu li o texto mais lúcido que já encontrei na área de desenvolvimento de jogos. Ele não só reafirma algumas de minhas convicções nessa jornada de 12 anos como joguinista, mas também elucidou alguns pontos para seguir com mais clareza e tranquilidade nesse caminho.
Recomendo fortemente a leitura do texto, no link a seguir, e se assim desejar, caminhar comigo em meio a minhas reflexões:
Sei que utilizar a si mesmo como “exemplo” não é algo muito “científico”. Mas, em se tratando da área de artes, e na própria prática que nós encontramos paralelos entre nosso fazer e o fazer dos demais artistas. Eu não quero com isso servir de “exemplo” pra nenhum desenvolvedor (mas talvez o queira como ser humano, talvez). O que quero é mostrar que algumas coisas servem para mim, e talvez também sirvam para alguém mais.
Se você leu a tradução de Janos Biro para o texto de Brendan Keogh, e espero que sim, então vai acompanhar os pontos que pretendo colocar. A começar citando a síntese mais importante do texto:
"Criar jogos não é fundamentalmente uma atividade econômica".
Como Brendan coloca claramente: fazer poesia, criar uma música, criar uma imagem, não é fundamentalmente uma atividade econômica. Por ventura, para algumas pessoas, pode se tornar sua atividade de sobrevivência econômica nesse mundo (como tem se dado no meu caso). Foi por motivos históricos, em grande medida tensionados pela indústria do videogame, que a prática de "criar videogames" tem sido vista não como uma atividade criativa humana, tal qual as demais, mas como primeiramente um "empreitada" do tipo "empreendedora" comercial no entretenimento.
Eu preciso dizer que essa questão sempre me preocupou. Quem me acompanha sabe que eu frequentemente reforço que o game, para mim, é uma linguagem estética assim como são os quadrinhos, o cinema, a literatura, e demais... em outras palavras, é arte, no sentido amplo de atividade criativa humana. E apesar de ter optado, de 7 anos para cá, sobreviver dessa arte e ter ela como meu "ofício", eu sempre parto da vontade de criar. Tanto que sou avesso a analises de tendência de mercado. Eu faço games retrô pelos meus próprios motivos, alheio a modismos e "trends".
Já atempos que me perguntava do porque com os games essa noção das pessoas sobre arte era diferente do que é em outras linguagens. E eu via na indústria, no como ela se "apropria" da autoria dos jogos, como um dos motivos. Brendan deixa mais claro sobre a artificialidade desse processo histórico. E de fato, vejam como a indústria por muito tempo forçou a ausência de créditos nos games, proibindo os desenvolvedores de colocar seu nome (tem o caso famoso dos desenvolvedores do Adventure de Atari escondendo seus nomes numa tela de créditos secreta). Ou posteriormente, proibiam os nomes reais, obrigando eles a colocarem apenas apelidos, pseudônimos (muitos dos jogos da snk no Neo Geo). E mesmo quando a indústria assume um produto como algo "autoral", no final das contas todos os direitos são da empresa, por que antes de ser trabalho criativo aquilo é um produto. Shigeru Miyamoto só é alçado como grande autor de jogos e personagens da Nintendo por que seu nome se tornou um "asset", ele tem valor de capital simbólico para a empresa. Mas no final das contas, a empresa é dona de toda a criação, se ele fosse embora da Nintendo perderia qualquer controle sobre seus personagens.
Acho certeiro, e me tornou muito mais claro e sintético, a afirmação de Brendan de que é preciso assumir a "banalidade" da criação de games. Criar games é "apenas arte". Não no sentido de desvalorizar a criação, mas no sentido de humanizá-la. Criar games é uma atividade criativa humana, que pode existir independente de se existir um "mercado". E é por isto que ele diz que "jogos não são software". O game utiliza o software como parte de seu suporte, assim como uma pintura utiliza a tela e as tintas. O software é um meio, não um fim.
Criar jogos é então um trabalho criativo, e eu concordo plenamente que é preciso deixar isto claro à aspirantes e alunos de desenvolvimento de games. E isso não significa desvalorizar seu trabalho. Eu digo isso com a propriedade de minha prática, que tem sido até bastante consciente, também graças ao diálogo constante com o Trabalho do Pedro Paiva, e quero pegar nosso trabalho como forma de ilustrar isso. Mas me siga com esse trecho do texto de Brendan:
"Algo que costumava dizer para mim mesmo quando era um escritor freelancer: não trabalhe de graça, mas não trabalhe apenas por dinheiro. Havia uma corda bamba que eu queria andar entre respeitar meu próprio trabalho e não reduzir o valor do meu próprio trabalho a um valor puramente econômico"
Acho que isso resume bastante de minha prática. Quando iniciei a 12 anos atrás, eu ainda não pensava em "sobreviver" de minha arte. Até 7 anos atrás, eu sobrevivia como professor de artes em escolas públicas, até criando jogos com meus alunos, e nas horas vagas seguia criando meus games simplesmente por que eu sentia que precisava. Nessa época, distribuía meus games gratuitamente. Fazia eles da mesma forma como anos antes eu desenhava ou criava e gravava minhas próprias músicas. Criava por que viver para mim é criar arte.
De 7 anos para cá mudei de perspectiva, mas me esforcei para não criar ilusões, tentando encontrar meu próprio caminho autoral. Acreditei sim por um momento na falácia de que colocar meu game na Steam Coisa que fiz em 2017) seria garantia de vendas e sobrevivência. Pura miragem, mas que logo tomei consciência, até por conta da prática que mantive de avaliar meu trabalho, tomando meu tempo para escrever de forma ensaística e honesta comigo mesmo em meu blog. Prática essa que era reforçada pelo contato com o Pedro Paiva, que sempre fez coisa semelhante em seu blog.
Então o que tenho feito é seguir meu próprio caminho no meio do retro game, nicho do nicho dos computadores de 8 bits, mas onde sobrevivido e realizado minhas pretensões criativas. Sempre escuto de pessoas nos eventos que atendo "seu game devia estar na Steam, no Xbox, etc..." eu só acho engraçado, por que a pessoa não faz ideia da clareza que eu tenho do caminho que trilho. Eu estou onde estou por escolha própria, não só por falta de outras oportunidades. E isso tem tudo a ver com minha opção de "sobrevivência" econômica no meio do desenvolvimento de games.
Eu costumo dizer que o que eu faço é um "game artesanal". Não no sentido "gourmet", mas num sentido mais marxista: diferente do trabalhador alienado, eu tento ser o artesão que colhe a matéria prima, fabrico meu produto em todas as suas etapas, e depois vou até a feira (tanto virtual quanto presencial) vender e mostrar minha arte. E é por que tenho essa noção de valorizar aquilo que meu trabalho tem de mais potente: sua dimensão artística e cultural. Claro, eu estou "vendendo meu peixe". Mas isso também me deixa prevenido com certas ilusões de grandeza, sem ao mesmo tempo desvalorizar meu ofício.
Sendo bem franco, hoje em dia, depois de muito trabalho e esforço também na parte comercial de meus jogos, eles me rendem em média apenas 1/2 da minha renda básica. A outra metade vem de trabalhos freelance no meio do nicho de homebrew/retro games. Como qualquer outro artista, como um poeta, um pintor, cineasta, ou músico que também sou, eu sei que não é possível, ou muito raro, sobreviver exclusivamente de sua arte. Ainda mais num país de terceiro mundo onde a maioria esmagadora das pessoas gasta quase toda sua renda com moradia, transporte e alimentação. Então, minhas estratégias na parte econômica são as de um artista "qualquer", banal, como diria Brendan.
Queria dizer também que, enquanto professor que realizou um total de 11 jogos junto com seus alunos, em atividades de 6 meses e que me davam uma trabalheira imensa muito mal remunerado, eu já tinha uma noção a respeito dessa dimensão do game como "apenas arte". Ou como eu sempre pensei, como uma linguagem estética igual a todas as outras. E reconheci isso naqueles idos de 2014 quando descobri o trabalho do Pedro Paiva, que fazia exatamente o mesmo. O Pedro ainda trouxe muitas ideias claras a respeito da coisa de levar os games até as pessoas através de fliperamas improvisados, mas isso é história para outro dia. Brendan agora me deixou mais lúcido que o que eu e o Pedro tentávamos, cada um do seu jeito, fazer à época, era exatamente isso: mostrar para nossos alunos do ensino regular que o game era "apenas arte", uma atividade de criação humana que você pode fazer apenas por que fazer lhe preenche sentido no tempo da vida.
Para finalizar, queria mirar no problema que Brendan levanta da "curadoria" dos games. Esse é um problema pro qual nenhum de nós tem muita solução. O Pedro deu uma direção e pistas com o trabalho dos Fliperamas, algo que graças a ele eu tenho a perseverança de seguir fazendo. Mas isso ainda é uma atividade bem local. A verdade é que por conta do tal deus algoritmo os youtubers, resenhistas, mesmo que amadores a maioria, evita jogos que não estejam dentro de sua bolha e das "trends". Isso é um problema por que vicia e empobrece a curadoria. Já entra num campo que é também o da comunicação na internet, algo que me foge e não pretendo dar conta. Talvez a coisa deva começar pelos curadores se enxergar como críticos de cultura, não como gamers. Acho que as melhores resenhas de jogos meus foram de pessoas que se enxergaram assim, lembro bem de umas do Flilipe Veiga e alguns outros resenhistas que se sentiram estimulados pelo conteúdo cultural de meus games e encararam a resenha como um tipo de escrita literária. Mas fica aí o problema para quem é desta área tentar resolver, acho que isso já é demais pra minha cabeça.
Quanto ao tema principal, talvez minha sorte, e acredito que a do Pedro Paiva também, é que nós não viemos de uma formação nem em TI, nem em Desenvolvimento de Jogos Digitais, mas da Licenciatura em Artes Visuais. Viemos para a área de games com cabeça de artistas/pesquisadores críticos. Sou muito grato ao Janos Biro pela tradução do texto de Brendan. Sempre acreditei ser preciso reforçar esse aspecto do game como atividade criativa humana, e é bom contar com pessoas inteiradas no meio para tanto. eu sou meio isolado, apenas um artista criando aqui no meu canto e tentando sobreviver, mas ainda assim com a cabeça ativa e pensante.
Links:
https://contrafatual.substack.com/
https://menosplaystation.blogspot.com/
https://diarioartografico.blogspot.com/
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English:
“Making games is not fundamentally an economic activity.”
“Something I used to tell myself when I was a freelance writer: don’t work for free, but don’t work only for money. There was a tightrope I wanted to walk: respecting my own work without reducing its value to a purely economic one".
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