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A redescoberta do Fliperama
Esses dias eu vi no Instagram os lindos fliperamas novos do pessoal da Game e Arte, projeto do Jaderson e da Tainá, em SP, feitos completamente em madeira. Conversando com o Jaderson, um dos criadores do projeto, acabei me motivando a escrever algumas palavras aqui.
Mas vamos começar do começo, ou do meu começo por que é o que primeiro ativou uma fagulha na cachola. Desde que entrei na faculdade de artes eu tentava articular algo dos videogames no meu trabalho criativo. A princípio, de forma mais básica, eu orbitava na tentativa de uma poética em imagens me apropriando do visual dos games antigos, pixel art, low poly, para criar uma estética na pintura, desenho, escultura, e onde eu pudesse.
Até que em 2012 fiz uma instalação de “vídeo arte” utilizando a RETROBLUE, o segundo fliperama que eu tinha construído. Ali rolava o pioneiro game Pong, e enquanto o jogador tentava jogar rolava uma programação e um áudio que confundiam e alteravam as regras e o tempo durante o jogo (aquela lista no papel são as linhas de código que alteravam o game).
A intenção era brincar com as regras do jogo, até fazendo uma analogia a nossa vida no capitalismo, onde as regras são mudadas de acordo com a vontade de uma minoria da burguesia. Mas o importante aqui é o Fliperama, e como as pessoas se relacionavam com ele. Retomaremos isto mais a frente.
Chegamos a 2014, e ao me propor a fazer games com turmas de alunos na escola onde eu atuava como professor de Artes da rede pública de ensino, me obriguei a pesquisar sobre quem mais poderia estar fazendo o mesmo. Eis que eu encontro o Pedro Paiva, também fazendo games com os alunos, inclusive em condições muito mais tensas que as minhas. Assim como eu, o Pedro também tinha (e ainda tem) um Blog onde relatava e refletia sobre suas experiências. E foi o Pedro quem primeiro tomou consciência da importância do fliperama como estratégia, ou dispositivo, para levar o game até as pessoas numa condição que tentasse romper com a lógica dos espaços restritivos da indústria.
Imagem: Pirata de Prata, o primeiro de outros fliperamas criações do Pedro Paiva. Imagem retirada da postagem em seu Blog:
https://menosplaystation.blogspot.com/2019/06/antigamer-enquanto-antifascista.html
O Fliperama como quebra do cotidiano
Pedro Paiva vê o fliperama não só como mera “embalagem” para o game. Sendo o Fliperama um meio para levar o jogo aos espaços de circulação do público, o totem ou móvel também se torna parte do game. Como um tipo de “Zine”, as escolhas estéticas a respeito da forma do fliperama dizem algo para além do conteúdo escrito, ou jogado no caso. Tem muito mais a respeito que eu não poderia sintetizar aqui em tão poucas palavras, mas aconselho a leitura dos texto do Pedro sobre a “Fliperamosfera” https://menosplaystation.blogspot.com/2019/11/pirateando-oakland-videogame-rueiro.html e sobre o “Zinerama” https://menosplaystation.blogspot.com/2020/07/zinerama.html ambos em seu blog.
Partindo destas reflexões do Pedro, de nosso diálogo e das experiências que tenho tido ao levar meus jogos até as pessoas também com meus fliperamas, eu acredito que o móvel, o objeto do fliperama, é em si um dispositivo artístico. E não falo isso apenas de bonito, ou para “engrandecer” nosso trabalho, como se chamar ele de “objeto de arte” fosse um ato mágico de legitimação. Mas por que o fliperama tem o efeito de primeiro, momentos antes da pessoa experimentar o jogo, transportar as pessoas para um espaço diferenciado no espaço do tempo cotidiano.
Então as pessoas vêem o fliperama e são transportadas para um outro espaço, para um tempo fora do cotidiano, os mais velhos em certa medida pela nostalgia, mas a coisa não se resume a isto. Sempre me alegra perceber o quanto crianças de todas as idades, que não tem formada relação alguma com aquele objeto, são também transportadas para este outro espaço. Não é a nostalgia que as move, mas uma certa “magia” que o objeto fora do comum propicia.
O Fliperama convida as pessoas a experimentar o jogo de forma coletiva. As crianças se juntam para jogar, se alternam nos controles, assistem ao amigo jogando, dão opinião. E como já escreveu o Pedro Paiva, isto é ainda mais efetivo se cada fliperama, ou série de fliperamas, tem uma personalidade própria. Se os materiais e formato do fliperama são suficientemente particulares, únicos, se ele tem um nome, se utiliza materiais fora do comum, ainda melhor.
Imagem: da esquerda "Pirata de Prata", "Cavalo de Santo", e "Capeta Compiuter". Imagem cedida por Pedro Paiva.
Veja o exemplo, cada Fliperama do Pedro Paiva é diferente do outro, cada qual com sua personalidade e excepcionalidade. Os Fliperamas recentes do pessoal da Game e Arte tem sua particulariedade, não são feitos de MDF laminado, mas são de madeira, mais rústicos, ainda assim sendo fliperamas. Assim eu tento fazer também com os meus, sendo o Fliperama Anakrôniko de cano de PVC e tecido o meu modelo mais “alternativo”. Cada qual tem seu efeito estético, que adiciona algo ao game, e ajuda a criar este ambiente que trata de uma quebra do tempo “normal”, enquanto o videogame hegemônico, jogado em casa, é em geral uma continuidade do cotidiano.
É bem sabido que o espaço de uma “galeria de arte”, muda a leitura dos objetos. Se você vê um urinol em um banheiro, ou uma banana na feira, eles são o que são, pois estão em “seu devido lugar”. Se estes estão em uma galeria de arte, são outra coisa, por mais que as pessoas debatam se aqueles objetos são válidos ou não como arte, não é esse o ponto. De qualquer modo, esses objetos “deslocados” do seu lugar “natural” criam uma quebra do espaço e tempo do cotidiano, do “normal”. O interessante do fliperama reapropriado pelo videogame independente, é que não importa o espaço em que ele se insira ele vai criar uma quebra, ou seja, no seu caso não é a “galeria”, o ambiente, que propicia o deslocamento, mas o objeto anacrônico em si que cria esse efeito de descontinuidade.
Imagem: a tal banana numa galeria que virou polêmica na internet.
Claro, no momento seguinte há a sequência também por conta dos conteúdos “Inusitados” de nossos games: tanto os jogos do Pedro, da Game e Arte, e os meus, trazem elementos regionais e/ou culturais que são pouco comum nos games, sejam eles lugares de sua cidade, do folclore local, histórias e relatos, personagens da cultura pop reapropriados e deslocados de contexto, do cinema, literatura, etc, em geral fora de certos clichês da indústria e com ligação à vida real das pessoas. Teria muito mais o que falar nesse sentido, mas o assunto aqui são os Fliperamas e seu efeito.
Em síntese, nossos fliperamas são parte do trabalho, em conjunto com o game. O Fliperama é um objeto estético, que desloca as pessoas, além de ser uma interface fora do comum pela qual elas interagem com o game. Aqueles controles grandes exigem um movimento corporal maior, “movimentos mais largos”, e isso é mais um dos elementos que ajudam a criar essa quebra do espaço cotidiano ao jogador. Mas acima de tudo, são objetos meio que deslocados no tempo, inusitados, que convidam o jogador de forma a criar uma quebra da norma, do esperado, mesmo para quem não tem memória afetiva ou nostálgica com o objeto, até por que não é mero “objeto”, mas interface, dispositivo, para nossos games.
Bom, não quero ficar me repetindo, então termino deixando aqui os links relacionados ao texto:
Pedro Paiva:
https://menosplaystation.blogspot.com/
https://bsky.app/profile/pedromenos.bsky.social
Game e Arte:
https://www.gamearte.art.br/blog
https://www.instagram.com/talktogamearte/
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