segunda-feira, 31 de março de 2014

A falta


Pensar que a criatividade pode se apoiar na "falta" como gatilho não é uma operação tão simples assim. Em situações relacionais, com comunidades, é mais uma questão de percepção, de estar antenado e aberto aos desejos e saberes das outras pessoas. A falta costuma ser complexa, não uma ou outra necessidade específica, mas coisas que só podem ser supridas na construção de novas relações entre as pessoas.

Dito isso faço meu "mea culpa" por ter de simplificar didaticamente esse conceito para trabalhar ele em atividades de criação de narrativa. Sabendo que o narrador, segundo Benjamin, é o sujeito que se apoia na distância do tempo e/ou do espaço para dar legitimidade à experiência que carrega sua narrativa, e que a ficção é aquilo que, de notável, não vem impregnado de respostas, cabe a quem fabula diante de uma imagem buscar suas "faltas" - fazendo uma redução, lançar perguntas para a imagem. 


Que lugar é esse? Como, onde, quando? Quem é essa pessoa? O que faz ali? Por que nos olha fixamente?


Meu amigo Antú


Hoje eu posso ser considerado um ancião, mas um dia eu também fui jovem. Foi a muito tempo atrás que eu vi aquela imagem, mas ela parece cada dia mais viva em minha memória. Naquela época esse lugar era muito diferente: no lugar de prédios e concreto tínhamos grandes pastos e morros verdes; no lugar de hotéis de luxo na beira da praia tínhamos grandes dunas como pequenos desertos dentro de um grande oásis; e no lugar de ruídos frenéticos de automóveis e aparelhos eletrônicos podia-se ouvir os sons do silêncio.
Era mais um dia comum, onde os dias tinham um ritmo diferente, mais lento, onde nenhum ocorrido se passava despercebido. Eu desenhava com carvão sobre papel de pão enquanto olhava para a paisagem de minha janela. Primeiro estava tudo lá, como sempre: areias de duna, restinga, e atrás morros verdes sobre um céu que já esmaecia. No minuto seguinte, como num flash, aquela figura: um menino de cabelos longos, olhando com grandes amêndoas para dentro de meu quarto.

- Sai daí menino, não vê que tá me atrapalhando – eu pronunciei aos berros.
- O que você está fazendo? – retrucou o menino.
- Não é da sua conta – arrematei.

Como somos ariscos com o novo e o surpreendente. Eu ainda não sabia, mas ali quase coloquei a perder uma grande amizade que duraria por décadas a fio.  Não fosse a insistência inabalável de meu amigo, que no dia seguinte me encontrara entediado sem ter o que fazer, não teríamos tido todas as aventuras que vivemos quando juntávamos nossas imaginações com os fatos e lugares desse mundo que já não existe mais. Mas essas são outras histórias, que prefiro narrar nas próximas oportunidades. Até lá.

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