Joguinsta, artesão de
videogame, e afins...
O lance de “artesão” para se
falar de produtos digitais parece que realmente está na moda. A pouco tempo
atrás eu comentava sobre um texto do Renato Degiovani, pioneiro na criação de
games nos anos de 1980, que trazia essa caracterização: “Por
Um Punhado de Bits: Artesanato Digital”. Agora recentemente li e comentei no
Bluesky o texto do Victor de Paiva publicado no Controles Voadores: “De
Jogos Artesanais”, e na sequência o texto do Kelson; que produz os áudio documentários
do Fase II: “O Artesão Digital e o conteúdo produzido por humanos”. Eu dou uma de metido e teço comentários não por
acaso: filho de artesões ceramistas, desde meu primeiro game, As Aventuras de
Zé Baldinho, finalizado em 2014, que reivindico a ideia do artesão de videogame.
Nesses mais de dez anos de meu
blog eu costumo escrever a partir da minha experiência como artista, e já a um
bom tempo focado na criação de games autorais. Em vários desses lançamentos
toquei nessa questão de que eu me considerava um artesão de games, mais do que
um “Dev” no sentido usual. Mas o sentido que eu tenho insistido de usar não é
aquele do “produto gourmet”, mas sim aquele marxista de interpretação do mundo
social do trabalho. Em síntese, o Artesão é aquele que conhece e executa todas
ou quase todas as etapas do seu ofício, em oposição ao trabalhador
especializado da indústria que executa apenas uma etapa da produção. È bem
conhecido que o resultado disso é que este último se torna alienado do produto
de seu trabalho.
Eu bem sei o que é isto, por que
além dos meus projetos autorais eu também vivo de pixel art freelancer para
jogos de terceiros. E nestes trabalhos eu sou sim alienado o resultado, as
vezes ao ponto de não “me” reconhecer no resultado final. Mas voltemos a outra
faceta.
Já à muito tempo que vi o Pedro Paiva
utilizar o termo joguinista, para se definir como um criador de jogos autoral
(joguinista tal qual um quadrinista que cria histórias em quadrinhos). O Pedro fala
a partir de sua experiência e suas leituras, e faz todo sentido fugir dos temos
em inglês que estão associados a grande indústria que pouco tem a ver com
produtores independentes como nós. Acho que de forma semelhante, ele define o
Joguinista como esse criador que não é alienado do seu produto, e que trabalha
em todas as etapas de criação. É de forma semelhante que vejo também o artesão
de videogame.
Comentando para o kelson...
Tenho que dizer que dos três
textos recentes que citei acima, a reflexão do Kelson foi o que mais me instigou a
escrever este aqui. Tanto que eu lhe dei um retorno por mensagem privada do Bluesky, e é esse
retorno que quero reeditar abaixo:
Legal Kelson,
eu li tudo. Vejo que teu texto é um chamado às pessoas que produzem no meio
digital à produzirem como artesões, interessante... É difícil achar quem
produza "conteúdo" e se veja como artesão, por que a verdade é que
todos nós na internet não somos donos dos meios de produção. Especificamente,
não somos donos das plataformas digitais e redes sociais.
Seguindo ideias
que o Wilson do Cinegnose (Canal de youtube
do Cinegnose) tem falado muito, o que precisaríamos também são plataformas
digitais públicas e open source, ou seja, também é necessária uma
"soberania digital", um projeto nacionalista de internet: Rússia e
China não perderam tempo e a anos investem nisso, estando a China agora
inclusive na corrida das IA's com o EUA. Então esse me parece um primeiro
problema.
Uma das coisas
que a experiência de fliperamas de rua do Pedro Paiva me ensinou, e que também experimentei
na minha prática, é tentar não se restringir apenas ao meio de circulação digital.
O Pedro já falou bastante disso, relatando e refletindo a respeito, nos
escritos de seu blog: https://menosplaystation.blogspot.com/.
Eu tenho ido a feiras, eventos de games, mostrar meu trabalho. E apesar de meus
jogos serem essencialmente digitais, tenho levado materiais físicos para vender
e circular nesses espaços: livrinhos ilustrados, quadrinhos, material que
produzo a partir dos jogos, e também o jogo em mídia física.
Citando um
exemplo dessa experiência, de um ano e meio pra cá eu vendi umas 10 cópias da
coletânea contendo todos os meus jogos em um CD ou em cartão SD, a R$ 100 cada cópia. Um objeto feito artesanalmente:
adesivo do cd, capa, manual de instruções, tanto na edição quando confecção
física. Não é muito, mas é algo que faço pra ajudar a viabilizar meu trampo com
jogos, e também como experiência de circular fora do meio digital, ou seja,
fora das plataformas privadas das quais eu não tenho controle algum.
É preciso ser
propositivo a respeito da experimentação fora do meio digital, criando vias
alternativas no mundo real, com a comunidade. Tudo no digital vai ter sempre
uma liberdade parcial por que não somos donos das plataformas, isso é
necessário frisar sempre. Para superar isso só um esforço coletivo e
provavelmente por via estatal, algo que viesse de um movimento reivindicando soberania
digital ao país, por que nem isto temos.
Então, por
enquanto, não temos as condições materiais para que produtores de conteúdo se
tornem algo próximo a um artesão, eu acho. Acho difícil que, sem essas
condições, produtores que já surgiram como trabalhadores digitais mal pagos e
precarizados, possam superar isso. Mas não ficar apenas no digital é uma
experiência válida, mesmo que não dê conta de resolver todo o problema. No fim,
todos nós trabalhamos de graça ou quase de graça para as plataformas, e somos
então trabalhadores precarizados mal pagos ou nem pagos para os verdadeiros
donos dos meios de produção digital.
Acho que tem
uma dimensão individual, mais do “como fazer”, como cada artista faz, divulga, e
da forma de circulação de seus produtos na internet e fora dela. E tem uma
coletiva que precisaria de um esforço político de estado, com políticas de
soberania digital para termos alternativas de plataformas que não estejam na
mão de poucos capitalistas imperialistas, e esse início de governo Trump 2.0 tá
deixando isso claro.
Essa
"internet pública" é algo do qual estamos bem longe, e não vemos
ninguém encampando isso, nem militâncias, nem partidos políticos, mas ela
deveria ser feita de forma a dar condições materiais para que esses artesões
digitais pudessem existir. Mas sem elas, por enquanto, acho impossível. Fica a
dica pra quem é militante dos partidos grandes de esquerda de uma pauta
necessária de ao menos se discutir.
Mas as experiências
individuais de adaptar o que se produz digitalmente para o meio físico são
interessantes e válidas. Essa é uma das importâncias centrais do trabalho do
Pedro Paiva que não sei se a galera em geral entendeu muito bem. Mas temos
consciência de que também não resolve tudo.
Pra finalizar, Kelson,
me permita comentar um trecho de seu texto:
"Sei que
existem problemas em rotular tudo como conteúdo, mas não me refiro aqui a
reduzir um livro, disco, série ou filme a isso. Estou falando de posts, reels,
conteúdo produzido para sites ou perfis de redes sociais."
Concordo com
sua caracterização sobre o que seria o tal conteúdo e que não dá e reduzir
produções estéticas a isso. Mas penso também que o que artistas, que produzem
livros, jogos, filmes, etc, como eu, acabam por também ter de criar
"conteúdo" de rede social. Não é que meu game seja o tal “conteúdo”
em si, ou feito apenas para esse fim, ele não se reduz a isso, mas pra divulgar
ele eu preciso ficar fazendo postagens, cativando público, etc etc.. em outras
palavras: criando "conteúdo" de rede social (e trabalhando de graça
para os barões do vale do silício no processo).
Pra mim o tal
do "conteúdo" é basicamente isso: postagens que geram algum
engajamento. Acho que as redes sociais modificaram o uso da palavra conteúdo,
que antes se imaginava como "algo que carrega alguma mensagem importante
ou relevante" para "algo com potencial de engajamento". Então, produtores
como eu também são geradores de conteúdo de rede social por tabela, mesmo que
não se dediquem especificamente a isto, mas porque somos obrigados, para
divulgar nossa produção.
A discussão apenas começou...
Bom, acho que preciso resumir
então que eu vejo dificuldades estruturais, e dos meios de produção a qual nos
sujeitamos mesmo como independentes, à nossa tentativa de sermos “artesões
digitais”. Especialmente para quem é apenas “criador de conteúdo”, eu acho isso
impossível. Para artistas que como eu são “criadores de conteúdo” ocasionais,
em função da divulgação de sua produção, eu acho que é preciso experimentar
formas de circulação fora da internet, ou onde mais a criatividade mandar.
Bom, é isso por agora. Abaixo
links de textos passados meus que eu discuto a questão do “game artesanal” ou
coisa semelhante, e citações de trechos mais importantes destes:
2014 - Texto lançamento versão
final do game Zé Baldinho:
"Proponho o termo "game
artesanal" como uma alternativa ao “indie game” (ou game independente),
muito usado para definir games produzidos com baixo orçamento, por equipes de
poucas ou até uma pessoa apenas, geralmente com ferramentas acessíveis a
qualquer pessoa na internet." https://zebaldinho.blogspot.com/2014/08/game-artesanal.html
Texto sobre presença em Feiras de 2023:
https://diarioartografico.blogspot.com/2023/07/bruxolico-na-feira-cascaes.html
"Se eu posso falar algo para
meus colegas da cena underground de vídeogame brasileiro é o seguinte: produzam
objetos físicos. Eu os faço como um artesão (por questão material e tbm escolha
política), buscando “moldar” os materiais que eu tenho acesso, geralmente
baratos, mas com capricho estético". https://diarioartografico.blogspot.com/2023/07/festival-jogatorio-em-sao-paulo.html
2021, Filipe Veiga, da Teknamic,
falando de “O Purgatório de Virgílio”:
"Criar jogos digitais não é
só escovar bits e bytes. Pode-se ir além do jogo virtual que reside na memória
de um dispositivo electrónico e entrar no mundo físico, criando itens
artesanais que representem elementos desse mesmo jogo. Como xilogravuras para impressão
de folhetos ou fanzines, bem ao estilo da Literatura de Cordel - que, por
acaso, é um elemento de O Purgatório de Virgílio. Aqui está um post de um
criador que integra o digital e o real nas suas produções". https://diarioartografico.blogspot.com/2021/12/uma-reflexao-sobre-meu-fazer-artes-em.html
Texto de 2016:
"Mas recentemente também
tava pensando na fronteira como zona de exclusão de regiões em conflito, de
guerra. As fronteiras são o local do marginal, daquele que não se adéqua bem
nem de um lado nem do outro da fronteira. Pode ser que tudo que eu faça, até o
final da vida, não seja bem aceito nem como arte ou nem como artesanato, nem
como música ou nem bem como experimentação, nem como linguagem estética nem
como game". https://diarioartografico.blogspot.com/2016/06/transitar-pelas-fronteiras.html
Texto de lançamento de Bruxólico,
2023
"Este é um trabalho
artesanal, e não realizado por uma fábrica, em uma indústria. (...) Nenhuma
empresa, que possa produzir em larga escala, vai se interessar em fazer jogos
para ZX Spectrum, ou mesmo o Mega Drive, por exemplo, por que não há mercado de
consumo, e nem deve voltar a ter, como nos anos 80 e 90 para tanto. Sei que o
que falo é um tanto óbvio, não estou chamando ninguém de ignorante, mas é
preciso lembrar, e por isto somos nós, artesões do videogame, quem fazemos
jogos para estes sistemas “obsoletos” (mais um tema que dá de escrever um monte
a respeito, o quão, a tal obsolescência). Alguns destes produtores
independentes o fazem por hobby, e distribuem o jogo gratuitamente, outros,
mesmo que não precisem do retorno financeiro, cobram algo por que é justo que
sejam minimamente recompensados". https://diarioartografico.blogspot.com/2023/04/bruxolico-lancado-hoje-dia-08-de-abril.html