Algo que deixei de fora do texto anterior foram as influências e articulações com outras obras do cinema, literatura, e quadrinhos, que eu faço na construção de toda a estética de Virgil's Purgatory. Em parte ato falho meu, para o qual meu amigo Luiz Souza chamou minhaa atenção. Ao fim, não caberia tudo que há pra se falar no texto anterior. Algumas das minhas escolhas remontam a 2016, quando fiz a versão de PC com visual de Super Game Boy, e outras são recentes e foram incorporadas nessa nova versão para ZX Spectrum.
Uma das minhas práticas constantes é buscar inspiração fora do universo dos video games, sempre articulando com fontes de outras linguagens. É proposital a coisa de articular obras clássicas nacionais, internacionais, com a chamada Cultura Pop, até por que o que seria mais "POP" que o video game hoje em dia? Já em 2016 eu me inspirei principalmente no filme Deus e o Diabo na terra do Sol de Glauber Rocha, na Divina Comédia de Dante Alighieri, e na literatura popular do Cordel.
A anos atrás, lendo a edição em versos de A Divina Comédia, eu só podia pensar no quanto o Repente Nordestino, com os típicos versos também frequentes na literatura de cordel, eram semelhantes na forma e em certas abordagens à famosa obra de Dante. É dessa articulação que eu fazia na minha cabeça que surgiu o motivo principal para criar o universo do jogo, tudo deveria ter um visual que remetesse a xilogravura, frequentemente na literatura de cordel, com versos curtos e rimas, também semelhante á obra de Dante e a Literatura Popular Nordestina.
Em "A Divina Comédia" o poeta Dante morre e desce ao Purgatório. Seu guia é o poeta da Roma Antiga Virgílio (que ele tem como seu patrono nas artes, no maior espírito da Renascênça). Virgílio é o guia espiritual de Dante, e lhe explica a paisagem em cada um dos "planos" do Purgatório, Inferno, e Paraiso ao final. Em cada lugar que passa ele encontra seus detratores, inimigos políticos, burgueses e padres, e também amigos, cada qual sofrendo o destino, ou tortura, que a vida os levou a merecer.
"Deus e o Diabo Na Terra do Sol" é uma referencia que já deixo explícita na arte do cartaz do jogo, que copia elementos da arte de um dos cartazes do filme. A Prática de citar cartazes de filmes, e de articular eles com outra linguagem, eu peguei do procedimento de criação da banda de black metal "Ghost", que faz muito disso nas letras das músicas e nas capas dos discos. Se na música um artista pode, e deve, buscar inspiração fora da música, por que também não no vidoegame?
No filme de Glauber Rocha um personagem importante para destino do protagonista, Vaqueiro Manoel, é o peregrino Santo Sebastião, que pregava contra a miséria do povo desprovido de sustento pelos grandes latifundiários. Ele dá então ao protagonista uma caminhada, um caminho a seguir No momento em que ele se sente perdido, até que o frenesi religioso ganha ares quase lisérgicos e de confusão mental. Claramente inspirado na figura de Antônio Conselheiro essa foi a figura que inspirou o Peregrino do jogo. Assim como o Poeta/guia Virgílio de A Divina Comédia, meu peregrino dá dicas, insinua a direção que o protagonista deve seguir, mas sempre de forma enigmática, poética, dando margem para a interpretação do jogador/leitor.
O Purgatório é o primeiro lugar visitado por Dante, e é onde na religião cristã as almas pecadoras que tem alguma salvação expiam seus pecados. É um "inferno temporário", por assim dizer, não constituindo a danação eterna. Tem ainda um detalhe importante na caracterização do Purgatório de meu Virgílio: não é qualquer purgatório, mas sim a projeção pessoal do personagem sobre o que deveria ser o purgatório. Parto do princípio que a magia, ou o invisível, tal como a vida após a morte, só pode ser aquilo que cada um acredita ser. Se o cangaceiro vivia naquela religiosidade cistã popular, vida de um pecador em busca de justiça, ele só poderia se imaginar indo ao purgatório onde enfrentaria todos os seus demônios. Trata-se de utilziar do conceito mágico da "ideia forma", apresentado a mim pelos contos do meu amigo Luiz Souza, e que pdoe ser identificado também na obra de Neil Gaiman.
Virgílio era o nome perfeito, por que ao mesmo tempo que remetia ao poeta da Divina Comédia, também lembra o nome de Lampião, Virgulino. Mas meu cangaceiro não é simplesmente Lampião, ele, assim como o Curisco do filme de Glauber Rocha, encarna o espírito do cangaceiro mítico. Aquele mito quase sempre associado a Lampião na literatura de cordel, mas que torna a figura do pistoleiro cangaceiro trágica, violenta, em revolta contra as autoridades, e também poética. Fruto de uma terra árida e de uma sociedade brutal, ele leva ao extremo toda a dureza da sociedade do Brasil profundo.
Algo que eu fiz de novo, para essa versão do jogo de 2021, está relacionado ao visual do jogo. Para além do que já falei no texto anterior a respeito das limitações técnicas, também existem escolhas que prezo muito. Eu me inspirei nas xilogravuras da literatura de cordel, mas seria muito mais desinteressante apenas reproduzir o visual das Xilos na tela. A releitura através da pixel arte me interessa por que dela posso cirar "o novo". Eu então me inspiro para criar algo que é "plasticamente" diferente da Xilogravura, mas que ainda retém algo dela. parte da inspiração, ao menos na escolha das cores, veio também das revistas em quadrinhos "Sin City", de Frank Miller. Nos desenhos dos quadrinhos predomina o preto e o branco, com alguns elemetos chave em vermelho ou amarelo, de vez em quando.
Mas onde eu quero chegar com todo esse esforço? O que significa para mim articular Glauber Rocha, com A Divina Comédia, a Literatura de Cordel, Xilogravura, com o fantástico mágico e Frank Miller? Significa não só explicitar algumas das referencias culturais que me formaram, mas também associar elas sem hierarquias, e sem idealizações nem pudores também. Por que muitas vezes, uma obra põe em "check" certas idealizações presentes na outra. Significa me posicionar contra a ideia de cultura como tradição engessada, e entender que cultura só está viva quando está em constante transformação. Aquilo que parou de se transformar não está vivo, e se ainda não morto e enterrado torna-se um zumbi, um "morto vivo", uma carcaça que perambula e ocupa o espaço que poderia abrigar vida nova. Assim também se dá com a cultura, e qualquer tentativa de se manter alguma "Pureza" artificial vai ser sempre autoritária eainda fadada ao fracasso no longo prazo.
É com frequencia aquilo que é obsoleto no primeiro mundo vira a novidade aqui, e assim a indústria tem onde despejar todo o lixo encalhado em seus armazéns. Eu não chamaria exatamente de vantagem, mas uma das consequencias de nos formarmos culturalmente no terceiro mundo, onde as coisas costumam chegar sempre de segunda ou terceira mão, é que a gente aprende a ser um tipo de "catador de lixo". De procurar as pérolas, ou seus fragmentos, em meio ao lixo das sobras de enlatados que nos são relegados para "nos entretermos" e apaziguarmos. Por outro lado, temos uma herança de cultura popular tradicional pungente. Nessa encruzilhada o mais comum é ou as pessoas se fecharem na tradição para negar o lixo que vem de fora, ou abraçar o Pateta e o Mickey Mouse ignorando toda a cultura local. Como eu me insiro na produção de video games, já sabem, nesse espaço infelizmente predomina o segundo tipo de pessoas. Para mim (e por sorte não só para mim e também isso não é novo na maioria das lingaugens artísticas através da história da arte) não há de se jogar nada fora. Faz parte do trabalho selecionar e digerir aquilo que me chega, e se preciso tirar leite de pedra. Não para agradar o mercado, não para agradar o patrão, mas por uma questão de sobrevivencia cultural, de me por em movimento e não me tornar estanque, ou me deixar atropelar inconsciente do mundo que me esmaga.
Abaixo um trecho de letra da música que transcrevi e está na metade do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", e que se relaciona com meu jogo (faixa 7, Corisco, no album da trilha sonora do filme):
"Da morte do Monte Santo,
sobrou Manoel Vaqueiro
Por piedade de Antônio,
Matador de Cangaceiro.
A história continua,
preste da mais atenção.
Andou Manoel e Rosa,
nas vereda do Sertão.
Até que um dia,
pelo sim e pelo não.
Entrou na vida deles,
Curisco, o diabo de Lampião"
Logo em seguida um trecho do monólogo do cangaceiro Curisco falando para sua mulher a cangaceira Dadá. Eu não lembrava mais desse diálogo, tinha assistido ao filme a alguns anos atrás e revi ele momentos antes de escrever este texto, mas é itneressante como a questão da "cabeça" é abordada aqui e como também está presente no meu jogo:
"Tira os fantasma da cabeça que não aguento mais ver você no sofrimento. Já faz 3 dias, é muito tempo pra quem viveu na guerra. Corpo de Maria Bonita inchou e apodreceu. Os bicho agora tão comendo os olhos bonito dela. Morreu Maria mas Lampião está vivo. Virgulino acabou na carne mas o espírito está vivo. O espírito está aqui no meu corpo e agora juntou os dois. Cangaceiro de duas cabeça, uma por fora, outra por dentro. Uma matando, e a outra pensando. Agora quero ver se esse homem de duas cabeça não pode consertar esse sertão" (grifo meu).
Links e imagens com mais comentários:
Blog com contos do Luiz Souza: https://praiadoesquecimento.blogspot.com/
Deus e o Diabo na Terra do Sol: https://pt.wikipedia.org/wiki/Deus_e_o_Diabo_na_Terra_do_Sol
O filme De Glauber Rocha na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=RyTnX_yl1bw
Trilha sonora do filme: https://immub.org/album/deus-e-o-diabo-na-terra-do-sol-trilha-sonora-do-filme
Verbete na Wikipedia sobre Sin City: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sin_City
Verbete sobre o poeta Virgílio: https://pt.wikipedia.org/wiki/Virg%C3%ADlio
A direita a capa do primeiro disco da banda Ghost, de 2008, e à direita o cartaz do filme Salem's Lot, também chamado de Black Sabbath, e que certamente é um dos filmes que influenciou a criação do video game Castlevania. Mais paralelos entre as capas dos discos desta banda e cartazes de filmes neste link: https://whiplash.net/materias/news_755/302240-ghost.html
"No último capítulo, Camus esboça o mito de Sísifo, que desafiou os deuses: quando capturado sofreu uma punição: para toda eternidade, ele teria de empurrar uma pedra de uma montanha até o topo; a pedra então rolaria para baixo e ele novamente teria que começar tudo. Camus vê em Sísifo o ser que vive a vida ao máximo, odeia a morte e é condenado a uma tarefa sem sentido, como o herói absurdo. Não obstante reconheça a falta de sentido, Sísifo continua executando sua tarefa diária."
fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Mito_de_S%C3%ADsifo
Xilogravura do artista nordestino J.Borges. Mais informações em: https://followthecolours.com.br/art-attack/xilogravura-nordestina/
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