Faz alguns anos que nós, a Gang do Lixo, pensamos a respeito da nossa condição como artístas inseridos num ponto da história da arte e da geopolítica. Depois de tantos anos de interações, debates, com diferentes pessoas, chegamos ao nosso Manifesto da Arte Anacrônica. Para ser lido, debatido, xingado, e/ou levado a cabo:
https://drive.google.com/file/d/1lzNpNIFdlx4X_4Sr3JvDIscOXupfGtmA/view?usp=sharing
MANIFESTO DA ARTE ANACRÔNICA
A nossa percepção dos tempos e os próprios tempos históricos em si estão sendo modificados e isto é um ato político com conseqüências éticas e estéticas.
Uma teoria da arte que valha alguma coisa deve refletir o desenvolvimento histórico do seu objeto.
A anacronia descreve a arte atual porque dá a definição precisa das experiências sócio-culturais contemporâneas.
No caso do Brasil, como no caso de todas as margens, de todas as periferias, de todos os guetos, a anacronia, de fato, sempre fundamentou a nossa índole.
Desde a Primeira Missa pretendemos ser os fragmentos das civilizações que brancos europeus armados desembarcam em nossas baías.
Sempre a mesma defasagem de muitas modas em relação às metrópoles.
Sempre a mesma oferta de espelhinhos, contas de vidro e panos coloridos.
Desde Cabral é isso.
Desde o Ipiranga é isso.
Desde 1922 é isso.
De anacronia entendemos.
A anacronia é nossa!
A anacronia é verde-amarela como as cores das casas de Bragança e Habsburgo na bandeira da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil.
Não há mais centro.
Não há mais periferia.
Tudo é beira.
Uma civilização global de fragmentos e despojos.
A favelização universal das culturas.
“Mas o que vem a ser ‘anacronia’?”, pergunta-se o transeunte.
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que é o oráculo do nosso senso comum e bom pensamento, surge e sentencia:
Anacronia é o mesmo que retrógrado.
(Silêncio.)
...
Precisamos concordar sempre com o que diz algum Buarque de Holanda?
Não.
Concordamos com o Aurélio sobre anacronia?
Não.
Somos historiadores artistas e artistas historiadores.
Nossas matérias-primas são os vestígios das linguagens humanas nos tempos.
Nós sabemos, por ofício e experiência própria, que a anacronia não é o mesmo que reacionarismo, passadismo nostálgico ou fixação em representações acríticas e mitificadas do passado.
“César morto por um tiro de browning”; esta foi a fórmula de choque com a qual Lucien Febvre (ver WIKIPÉDIA) ilustrou a ideia de anacronia.
A anacronia é a invasão de uma época em outra, diz a literatura historiográfica.
É a mistura dos tempos.
Júlio César morto por um tiro de metralhadora em pleno 44 a.C.
Isto é anacronia.
David Bowie, um dos maiores estetas do século XX, considerava Adolf Hitler o primeiro rock star.
Ontem vi um vídeo na Internet 3.0.
Era um homem gravando a si mesmo enquanto bebia num só gole um copo inteiro de chorume fresco.
Ele queria likes.
Somos sobreviventes de um mundo pós-apocaliptico.
O pesadelo dos humanistas catastrofistas da primeira metade do século XX (Evgueny Zamiatin, Thea Von Harbou, Aldous Huxley, George Orwell...), depois transformado em ficção premonitória pelo cinema estadunidense (Robert Wise, Don Siegel, Stanley Kubrick, Franklin J. Schaffner, George Romero, John Carpenter...) e vendido como entretenimento familiar mundo afora, concretizou-se, pelas mãos da burguesia de Wall Street e associados, na atual paródia de todos os infernos já concebidos pelos poetas.
A pandemia iniciada em 2019 é o último capítulo de um livro ruim cujo prólogo foi escrito em 1973, no Chile, com o sangue de Salvador Allende.
Todos os Chicago Boys, Augusto Pinochet, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, George W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush Jr., Barack Obama, Donald Trump, Joe Biden…, fantoches do complexo industrial-militar estadunidense e sistema financeiro internacional, numa orgia de brochas, conceberam o mundo que cagou a nossa geração (a descendência inepta dos chamados “baby boomers”).
E aqui estamos nós, os herdeiros atuais de uma montanha de lixo.
O chorume que escorre dela é anacrônico.
O resíduo líquido formado a partir da decomposição de matéria cultural presente no catálogo de importados dos grandes centros do capitalismo tardio e convulsionado.
O chorume que você também bebe.
O chorume que você está bebendo agora.
Spleen de deuses.
Ser contemporâneo é uma questão de classe. A pobreza nos obriga ao convívio com as diferentes temporalidades tecnológicas do lixão e com a arquitetura anacrônica dos barracos. Somos caçadores coletores que sonham os sonhos de bilionários que nos exploram enquanto lêem Isaac Asimov.
Você foi enganado, campeão.
Você foi enganada, florzinha de primavera.
Você não é especial.
Você não é o menininho da mamãe.
Você não é a princesinha do papai.
Você é a mão-de-obra barata e dispensável que, em breve, será substituída pelos seus filhos e filhas. Aquela gente sem futuro, sem passado e sem presente que você, devidamente programado pelos roteiristas de telenovelas e séries de streaming, irresponsavelmente pôs no mundo.
Um mundo que já é a distopia e será ainda mais conforme a avaliação de todos os que ainda ligam (ou ligavam) lé com cré (de Stephen Hawking, passando por István Mészáros, Immanuel Wallerstein, Naomi Klein, Noam Chomsky, entre outros e outras).
Falar com você, hommo absurdus, em termos um pouco mais elaborados do que os de um vídeo tutorial de um minuto é quase sempre perda de tempo.
Falar com você, peça descartável, em termos um pouco mais elaborados do que os de um meme é quase sempre perda de tempo.
Falar com você, ser desmemoriado, em termos um pouco mais elaborados do que os de uma sinopse de série animada é quase sempre perda de tempo.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não tem.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não é mais capaz de perceber.
Tempo.
Tempo.
Tempo
Tudo o que você não é mais capaz de elaborar.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não é mais capaz de refletir.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não é mais capaz de ponderar.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não é mais capaz de pensar.
Tempo.
Tempo.
Tempo.
Tudo o que você não é mais capaz de...
Quebrado em sua consciência histórica você regrediu aquilo que os colonizadores dos séculos de ouro do imperialismo insultariam como “bárbaro”.
Você é a mente selvagem a ser catequizada por trilhões de terabaites de poluição informacional.
O animalzinho a ser domesticado ou abatido.
A fibra óptica sucedeu a cruz e a espada no capitalismo tardio.
Será, pois, aos homens absurdos, aos novos bárbaros que a arte do século XXI necessariamente deverá falar.
O poder redistribui o bem comum e, na medida em que o faz, atua esteticamente.
As pautas de Davos.
As equações do M.I.T.
A agenda do Pentágono.
Tudo acaba numa instalação do MoMA, num reallity show ou num blockbuster de super-heróis.
A questão, camarada, não é SE você vai morrer.
A questão, camarada, é COMO você vai morrer.
Você quer morrer como um cordeiro?
Você gostaria de ir ao abatedouro, assim, como um cordeiro?
O mash-up é o novo soneto.
A tela, por meio da qual você provavelmente está lendo isto, custou à espécie humana alguns milhões de unidades.
Pelo menos...
- 2 guerras mundiais.
- 2 cidades japonesas.
- 1 Coréia.
- 1 Vietnã.
- Todas as ditaduras da América Latina.
- 2 Golfos.
- 1 Afeganistão.
- 1 Iraque
- 1 Síria.
- 1 Ucrânia em andamento.
- Todos os massacres, chacinas e genocídios brasileiros pelo menos desde 1964.
- E agora – ápice da História! – uma montanha de cadáveres descartados por uma pandemia de vírus letal.
Um mundaréu de gente triturada para que você tenha com o que preencher as suas horas inúteis e consumir com maior eficácia.
Tudo pela circulação do capital financeiro e pacificação social.
Você é um mico amestrado condicionado a dar likes.
Você sabe disso.
E importa?
Não. Por que importaria?
O cinismo tornou-se a sua segunda natureza.
A realidade, contudo, felizmente é contraditória.
Feche os olhos e imagine.
Feche os olhos e imagine Sergei Eisenstein.
Ou Glauber Rocha.
Ou Charles Chaplin.
Ou Leni Riefenstahl.
Nus e descalços.
Peles pretas e olhares brilhantes.
Meninos e meninas do tráfico P2P.
Imagine.
Georges Méliès com um smartphone vagabundo nas mãos.
Imagine.
Quanto ao método partamos sempre do chão.
Da urgência do comer e do vestir.
Do fundamento lógico das coisas duras e materiais.
Toda informação cultural produzida e preservada pela humanidade concentrada ao máximo num único e gigantesco banco de dados.
Toda a história da arte virtualmente acessível a qualquer capaz de digitar uma palavra num buscador on-line.
Uma civilização global concomitantemente central e periférica, provinciana e cosmopolita, atual e passadista, tradicional e moderna, revolucionária e reacionária.
Todos os tempos históricos e horizontes de futuro possíveis emergindo uns dos outros enquanto descemos as barras de rolagens dos nossos navegadores.
A cabeça do astrólogo de Raul Seixas em pleno surto esquizofrênico.
Olhe para fora da janela neste exato instante.
Vá e veja.
A obsolescência programada para o próximo segundo.
O contraste entre a chateza e esfericidade terrestre.
A estética Mad Max das carroças dos catadores de papelão.
As mensagens medievais estampadas nas camisetas da juventude.
A anacronia total.
“O anacronismo é uma práxis estética que visa atualizar a ideia de vanguardas artísticas e políticas para o contexto do século XXI.”, dirão as notas de rodapé dos manuais de história da arte.
Claro, isto sendo otimistas.
Talvez não haja futuro.
Talvez não haja história.
Talvez não haja arte.
Reivindicamos a anacronia para antropofagizar livremente não só no espaço, como o fizeram nossos pais pernambucanos, nossos avós baianos e nossos bisavós paulistas.
Somos cosplayers de Tarsilas, Pagus e Andrades e também queremos antropofagizar, mas NOS TEMPOS!
Estes tempos implodidos.
Estes tempos pulverizados pela atual fase do capitalismo.
Reivindicamos a anacronia em nome do Deus Tempo!
Reivindicamos a anacronia em nome de todos os deuses mortos!
Reinvidicamos a anacronia contra o Eterno Agora, o continuum que não nos deixa nem morrer, nem nascer, nem viver!
Eis o que somos:
Um videogame de madeira.
Dezenas de janelas reproduzindo simultaneamente vídeos numa cacofonia espaço-temporal.
Todos os tempos invadindo o presente.
Todos os tempos reinventando o passado.
Todos os tempos alterando os horizontes de futuro.
Temos mais recordações do que há em mil dias.
Temos mais recordações do que há em mil anos.
Temos mais recordações do que há em mil servidores.
Somos moços e, no entanto, velhos.
Somos velhos e, no entanto, contemporâneos.
A arte, que um dia chamarão “nossa” assim será porque já é ANACRÔNICA.
Judas Capiango (Luiz Souza)
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