segunda-feira, 12 de junho de 2023

Na contramão da obsolescência

(English Translation on the bottom)


Imagem: Jogo "Papai Noel is Dead", 2014, de Pedro Paiva


De tempos em tempos se faz necessário, e me faz bem, lembrar e falar a respeito de algumas coisas que orientam meu trabalho criando vídeo jogos. Eu estou vivo, eu tenho notícia das "novidades" tecnológicas que aparecem no mercado de games, tais como Realidade Aumentada, VR, e as estratégias viciantes de jogos mobile, etc. Mas meu lance é ir no sentido contrário: me aprofundar no uso de tecnologias obsoletas, já deixadas de lado pelo grande capital. É nelas que eu vejo maior potencial de se fazer uma arte acessível e livre dentro do video game.


Eu comecei fazendo jogos estilo "retrô", para PC, mas sempre inspirado pela minha experiência com os jogos de videogame dos anos 80 e 90. Atualmente faço jogos que funcionam nestes aparelhos e sistemas já obsoletos, orbitando ao mesmo tempo um nicho de mercado retrô e a margem do chamado "indie" do videogame. Mas no fundo tô sempre meio deslocado, tanto entre o pessoal do retro game, que é em geral movido pela  nostalgia, e do meio “Indie”, que já é um mercado considerável e não tem a prática de jogar e enxergar os jogos que rodam em emuladores como algo próximo. Esse é assunto que dá outra reflexão, por agora vou seguir em frente.


Eu trabalho com um tipo de "sucata", com o obsoleto, em primeiro lugar por que me é mais acessível: não exige um computador potente, não exige grandes softwares de alto custo, e não exige investimento de capital e equipes grandes para criar um jogo. Mas, para além dessa questão útil, tem questões simbólicas que surgem desta escolha. Todo trabalho que utiliza da sucata tem uma dimensão pedagógica: ela mostra para as pessoas ao redor que é possível produzir cultura fora dos meios totalmente capturados pelo capital. Você tem artistas na música brasileira que fizeram isto de forma plena, como Damião Experiença, ou que nele se inspiram para fazer de forma simbólica e trabalhar com o lixo imaterial da cultura, como Rogério Skylab. No caso do videogame, é possível produzir fora do deslumbre da última tecnologia e da sua alta carga ideológica neo-liberal.


Eu tento fazer jogos que na sua essência, na forma de jogo, são parecidos com os que foram criados nos anos de 1980 e 1990, mas com uma diferença consciênte: naquela época esses jogos eram norteados por ideologias de mercado e pensados para serem produtos vendidos a crianças e adolescentes, apenas como brinquedo e entretenimento, sendo o conteúdo cultural algo secundário. Não que não pudesse existir, apenas não era o principal objetivo das empresas e estúdios a dimensão do videogame como produto cultural. Não é o caso dos meus jogos.


Em meus jogos eu tento atualizar essa linguagem do videogame dos anos 80 e 90 tratando os conteúdos com a mesma seriedade que eu trataria se estivesse fazendo literatura, ou cinema, ou artes plásticas. Uma por que acredito que o público da minha idade deva ter amadurecido como eu, e outra por que não quero subestimar a inteligência dos mais jovens que porventura chegarem aos meus jogos. Em meio a uma  indústria cultural pop atual que vai no sentido de infantilizar intelectualmente e afetivamente seu público, para assim lhe tornar presa mais fácil para seus produtos e ideologias, com seus filmes de super heróis e dentro da própria "onda retrô", eu nado contra a corrente e busco atiçar a consciência de quem me joga e me lê. Enquanto a indústria cultural quer a infantilização e inconsciência de seu público, eu quero o amadurecimento e a consciência.


Eu tento pegar aquilo que eu acredito que era bom na forma do videogame dos 80 e 90, seus elementos de linguagem, e dou um tratamento de "gente grande", ainda que eles continuem sendo um jogo "normal", que funciona como os da época. Tento subverter sutilmente sua função, mesmo sabendo que é impossível excluir a dimensão de produto de entretenimento. O jogo tem de ser divertido, tem de ser bom de jogar, e o jogador pode simplesmente não dar bola para a história ou elementos culturais do vídeo jogo, faz parte. Mas isso é uma escolha dele, sua, que eu como artista não posso controlar, mas posso “atiçar”. E parecido comigo, só no meio do videogame, tem gente como o Pedro Paiva, do selo “Mais ódio menos playstation”, que já estava fazendo um trabalho nesse sentido um pouco antes de mim. O Pedro claramente sempre tratou o videogame como linguagem a ser explorada, tem refletido sobre muitas outra questões como as formas de levar o videogame para a rua, e certamente deu um pontapé no que temos hoje de "undergorund" do videogame brasileiro, no qual me incluo.


E quando falo do vídeo jogo como linguagem, quero frisar aqui um ponto bem importante e que me toca. Existe uma tendência estética, tipicamente conservadora, de valorizar o "realismo" nos jogos. É uma noção de realismo pseudo fotográfico que, além de irreal, é pobre no campo simbólico. Realismo pra mim seria algo mais próximo de um “realismo social” nas artes plásticas ou cinema, mas isto que existe no videogame é algo muito mais próximo de uma estética Neo-Clássica. O videogame dos anos 80 e 90 é então muito mais interessante como linguagem, por que ele tem de criar abstrações, símbolos, que obrigam o jogador a inferir significado, diferente do significado supostamente já dado pela imagem "realista". Só esta primeira operação linguística já é pelo menos uma fagulha de imaginação mais interessante, mas eu tento ir além dela.


O vídeogame é uma linguagem jovem. Muito mais que os quadrinhos e o cinema, com certeza. E toda linguagem jovem, quando tenta se estabelecer como arte, como linguagem estética, faz um primeiro movimento de se apoiar naquelas artes já estabelecidas. Por exemplo, apesar dos quadrinhos serem uma forma distinta da literatura eles se apoiaram nela, nos anos 70, 80, com a coisa das “graphic novel”, para se estabelecer no mercado como uma forma de arte. O cinema a princípio era visto como curiosidade técnica, mas os pioneiros referendar muito a literatura e o teatro para assim mostrar que ali também existia arte. Então, ao mesmo tempo que tento fazer um videogame como linguagem autônoma, eu fico dialogando o tempo todo com outras linguagens: o cinema, a literatura, a música, as artes plásticas, ou o que aparecer na minha frente. Essa é uma operação que faço de forma consciente.


Toda esta minha postura é condizente com o que está no Manifesto da Arte Anacrônica, criado pela Gang do Lixo, com o texto final redigido pelo meu amigo artista e historiador Luiz Souza. Ele tem feito experiências literárias e audio-visuais interessantes no sentido de compreender e explicitar do que se trata esta característa verdadeiramente contemporânea da arte, que é a anacronia. O que eu faço então não é exatamente um vídeo game indie ou retrô, apesar de entre eles orbitar, mas um videogame anacrônico, por que me utilizo da sucata, material e imaterial, e faço um "passeio crítico" e contextualizante da forma do vídeo jogo no tempo. Ele não é nem exatamente o vídeo game do passado, nem o hegemônico atual, mas outra coisa. Além de antropofagizar no espaço geográfico, tento fazer isto no espaço histórico do tempo. Esta é minha pequena subversão, meu cavalo de tróia, a sementinha que consigo plantar a partir da minha tentativa de sobrevivência e existência significativa nesse mundo.




Links relevantes:


Manifesto da Arte Anacrônica:

https://drive.google.com/file/d/1BeD5IyP4XJLFWyMXVx57QBHOR4LgJBVT/view?usp=share_link


Revista Anacronia Nº1:

https://revistadaanacronia.blogspot.com/2022/08/anacronia-n-1.html


Facebook Luiz Souza:

https://www.facebook.com/profile.php?id=100014702388304


Blog Menos Playstation:

http://menosplaystation.blogspot.com/


Twitter pedro Paiva:

https://twitter.com/menosplay


Doc sobre Damião Experiência:

https://www.youtube.com/watch?v=yGGRLTE9A1g


Instagram Rogério Skylab:

https://www.instagram.com/rogerio.skylab/


Amaweks

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English Translation:


On the wrong way of the obsolescence


From time to time, it becomes necessary and does me good to remember and talk about some things that guide my work in creating video games. I'm alive, I keep up with the technological "innovations" that emerge in the gaming market, such as Augmented Reality, VR, and the addictive strategies of mobile games, etc. But my "thing" is to go in the opposite direction: delving into the use of outdated technologies that have been abandoned by big capital. It is in them that I see the greatest potential for creating accessible and free art within the realm of video games.

I started by making retro-style games for PCs, but always inspired by my experience with video games from the 80s and 90s. Currently, I create games that run on these outdated devices and systems, orbiting both the retro market niche and the margins of the so-called "indie" game scene. But deep down, I always feel somewhat out of place, both among the retro gaming crowd, which is generally driven by nostalgia, and the "Indie" scene, which is already a considerable market and doesn't view games running on emulators as something close to them. That's a topic that warrants further reflection, but for now, I'll move on.

I work with a type of "scrap," with the obsolete "low tech", primarily because it is more accessible to me. It doesn't require a powerful computer, expensive software, or large investments of capital and teams to create a game. But beyond this practical aspect, there are symbolic issues that arise from this choice. Any work that utilizes scrap materials has an educational dimension: it shows people around that it is possible to produce culture outside the realms completely captured by capital. In Brazilian music, you have artists like Damião Experiença who have fully embraced this approach, or those who draw symbolic inspiration from it and work with the immaterial waste from pop culture, such as Rogério Skylab. In the case of video games, it is possible to produce outside the allure of the latest technology and its high neoliberal ideological burden.

I strive to create games that, in their essence and gameplay, are similar to those created in the 1980s and 1990s, but with a conscious difference. During that time, those games were guided by market ideologies and designed to be products sold to children and teenagers, primarily as toys and entertainment, with cultural content being secondary. It's not that cultural content couldn't exist back them; it just wasn't the main objective of companies and studios to view video games as cultural products. That's not the case with my games on present day.

In my work I try to update the language of video games from the 80s and 90s by treating the content with the same seriousness I would give to literature, cinema, or visual arts. One reason is that I believe the audience of my generation should have matured, just like I have. Another reason is that I don't want to underestimate the intelligence of younger players who may come across my games. In the midst of a current pop cultural industry that tends to intellectually and emotionally infantilize its audience, in order to make them easier prey for its products and ideologies, with its superhero movies as main example, I swim against the current and strive to awaken the consciousness of those who play and engage with my work. While the cultural industry seeks to infantilize and create unconsciousness in its audience, I aim for maturity and awareness.

I try to take what I believe was good about the form of video games from the 80s and 90s, their language elements, and give them a "grown-up" treatment, even though they still function as "normal" games, just like those from that era. I subtly attempt to subvert their function, even though I know it's impossible to exclude the dimension of entertainment product. The game must be fun, it must be enjoyable to play, and the player may simply not pay attention to the story or cultural elements of the video game, and that's fine. It's their choice, and as an artist, I can't control it, but I can provoke it. Similar to me, within the realm of video games, there are people like Pedro Paiva, from the label "Mais ódio menos playstation" (More hate less playstation), who has been working in this direction a little before me. Pedro clearly always treated video games as a language to be explored, reflecting on many other issues such as ways to take video games back to the streets, and he certainly played a key role in shaping the current "underground" scene of Brazilian video games, were I includes myself.

And when I talk about video games as a language, I want to emphasize a very important point that deeply resonates with me. There is an aesthetic tendency, typically conservative, to value "realism" in games. It's a notion of pseudo-photographic realism that, apart from being unrealistic, is lacking in symbolic richness. For me, realism would be something closer to a "social realism" in visual arts or cinema, but what exists in video games is much closer to a Neo-Classical aesthetic. The video games of the 80s and 90s are much more interesting as a language because they have to create abstractions, symbols, that require the player to infer meaning, unlike the supposedly given meaning in a "realistic" image. Just this initial linguistic operation is at least a spark of a more intriguing imagination, but I strive to go beyond that.

Video games are a young language. Much more so than comics and cinema, for sure. And every young language, when trying to establish itself as art, as an aesthetic language, makes an initial movement of leaning on those established arts. For example, despite comics being a distinct form from literature, they relied on it, in the 70s and 80s, with the concept of "graphic novels," to establish themselves in the market as an art form. Cinema was initially seen as a technical curiosity, but the pioneers often referenced literature and theater to show that art also existed in that medium. So, while I try to create a video game as an autonomous language, I am constantly in dialogue with other languages: cinema, literature, music, visual arts, or whatever comes across my path. This is an operation I undertake consciously.

All of this stance aligns with what is stated in the Anachronistic Art Manifesto, created by the Gang do Lixo (Trash Gang), with the final text written by my friend, artist, and historian Luiz Souza. He has been conducting interesting literary and audiovisual experiments in order to comprehend and make explicit the truly contemporary characteristic of art, which is anachronism. What I do, then, is not exactly an indie or retro video game, although it orbits around them, but an anachronistic video game because I utilize scrap, both material and immaterial, and engage in a critical and contextual exploration of the form of video games over time. It is neither precisely the video game of the past nor the current hegemonic one, but something else. In addition to anthropophagizing in the geographical space, I try to do it in the historical space of time. This is my small subversion, my Trojan horse, the little seed that I manage to plant through my attempt at survival and meaningful existence in this world.

5 comentários:

  1. Também sendo que embora algo seja atualmente percebido como novidade, dentro de 20 anos pode ser um lixo para a indústria, eu, por exemplo, não tenho muito interesse em seus jogos, pessoalmente prefiro videogames 3D, porque eles me dão sentimentos que eu pessoalmente prefiro e sou outra pessoa detalhada (veja eu amo a saga GTA pelo menos até antes de 5) ou meu jogo favorito é mario galaxy 1 do wii, embora eu também ame jogos em geral de 64 mais do que qualquer coisa porque sinto que eles dão tenho vibrações muito particulares, embora também me dê ao luxo de experimentar jogos 2d dos anos 90, e geralmente sou um jogador que procura diversão, atmosfera, etc, e não tanto uma mensagem, especialmente porque há pessoas que consideram isso um jogo não precisa necessariamente ser divertido, mas nas redes vejo tanta briga por isso que me estressa, em um hobby que tenho me dedicado tanto, me falarem que tenho que jogar, ou que tenho que gostar isso, seja alguém mais velho (detesto jogos dos anos 80, irritantes, e não gosto da estética deles, principalmente por parecerem muito psicodélicos, o que me dá pesadelos ou tonturas) ou mais jovem (não sou uma pessoa que gosta de jogos para celular , e tento ficar totalmente longe de qualquer coisa que queiram me vender só porque, optando mais pela pirataria).


    Eu queria contar a alguém como você algo sobre isso para ver o que ele poderia me dizer, quando eu tinha quase 25 anos. Que ele está em um limbo geracional de não ser muito jovem ou muito velho, o que me dá dores de cabeça sobre o que gosto em comparação com muitas outras pessoas. Acima de tudo porque sou uma pessoa que pensa que cada um (desde que não prejudique ninguém) faça o jogo que quiser no estilo que quiser, mas não é por isso que as pessoas são obrigadas a jogar ou gostar e que cada um encontra um caminho. Sendo alguém que pessoalmente pensa que o melhor do médio está entre 1991-2013 a nível geral.

    Saudações

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  2. Opa, obrigado pelo longo comentário. Eu compreendo o que você fala, e acredito que se faz necessário que eu tente explicar melhor algumas das cosais que estão no texto de outra forma. Por conta do limite da caixa de comentários vou numerar os parágrafos do texto pra você saber a ordem.
    1 - Quando falo em "obsoleto" eu me refiro a tudo que a indústria já descartou como algo "de segunda linha". Se eu foco nos gráficos 2D, mais especificamente em pixel arte, é por que é a forma no videogame que eu tenho mais familiaridade e propriedade para falar a respeito, e a qual estudo. Mas considero também todo esse gráfico poligonal desde o "lowpoly" até gráficos de PS2 e semelhantes como algo já obsoleto. Também, não é só uma questão de gráficos, tem a ver com a forma como um todo: nesse sentido o que existe de mais "moderno" na indústria é a forma dos jogos de telefone celular, smartphones, micro transações, Realidade Virtual, Realidade Aumentada, e outras tecnologias que tem sido aplicadas usando os jogadores como um tipo de "cobaias" de experimentos sociais. A questão da obsolescência vai então pra além da questão dos gráficos. Mas o mais importante aqui é que, apesar de não existir uma linha clara entre o que são gráficos "obsoletos", mas nós conseguimos mais ou menos distinguir entre o que é um jogo AAA e o que não é, ou o que é um gráfico de última geração, e o que não é.

    2 - Quando falo de "obsolescência" também estou me referindo ao conceito de "obsolescência programada". Um recurso já antigo da indústria, que consiste em criar mecanismos que forcem as pessoas a descartarem um produto para trocar ele por uma nova versão. Nesse sentido, sacolas e utensílios de plástico são uma forma de obsolescência programada, pois são descartáveis e substituem os que antes eram de vidro. Você vai encontrar exemplos em todo o espectro da indústria, seja a indústria do automóvel, de eletrônicos, em todas, até na indústria cultural.

    3 - Tudo isso é um fenômeno histórico, ou seja, as cosais mudam no tempo. O que é novidade hoje vai se tornar obsoleto amanhã, ou até podemos "regredir". A indústria da tecnologia tenta vender a ideia de que as cosias "só vão para a frente" em termos de evolução, mas isso é falso, elas podem regredir, ou mesmo quando elas aparentem avançar em termos tecnológicos elas podem ter um efeito contrário na sociedade, não é uma relação simples. Eu também parto dessa noção, e não considero as cosais de forma absoluta como se estivesse congeladas no tempo, mas tento perceber como elas são neste momento presente.

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  3. 4 - Quanto à aquilo que toca o conceito de "Arte Anacrônica" tem a ver com o uso de qualquer tecnologia "lixo" para subverter seu uso, ou seja, usar para outras finalidades que não as que a indústria as definiu. O Smartphone é vendido para as pessoas com a ideia de que eles servem para você bater fotos e gravar vídeos da sua vida privada e postar nas redes sociais, e interagir através delas e de redes de comunicação tipo o watsapp. Isso é o que diz a propaganda. Mas nós queremos dizer que você pode subverter este uso, e usar ele para gravar um filme, um documentário. Alguém pode dizer "mas dai o vídeo não vai ficar em alta resolução, não vai atender aos critérios de qualidade da indústria cultural estabelecida (hollywood, netflix, youtube, etc) ", e nós respondemos "dane-se, é até melhor que não atenda os requisitos, veja aqui eu filmando a tela defeituosa de meu computador com meu celular". Aqui tem uma diferença de conteúdo, até por que não nos referimos apenas ao "Lixo" material, visível, mas também ao imaterial, ideológico, cultural, do nosso tempo. Por exemplo, numa época em que tudo é muito veloz, vídeos curtos e rápidos, tudo muito superficial e tão rápido que nem dá tempo para as pessoas pensarem, um vídeo longo, com pausas, com longos momentos de silêncio, se torna "obsoleto", mas é exatamente por isto que ele nos interessa, por que ele é a forma de se produzir alguma arte que dê as pessoas um espaço para o seu próprio pensamento. Fazer isto é ir contra a corrente de certo modo.

    5 - O mais importante é o conteúdo e como ele se expressa através da forma. Não existe forma que não carregue em si algum conteúdo. O "ultra realismo", ou algo "mais real que o real", ou o que eu considero como "neoclássico" carregam em si, na sua forma, uma mensagem sobre o que é belo, o que é a realidade e o que não é. Isto para além até das intenções de quem se utilize destas formas. É assim como toda forma, esta lição está na história da arte como um todo. Eu só sei que se a indústria deste capitalismo tardio, decadente, e necrófilo, que está consumindo a si mesmo, vai na direção deste ultra realismo, então eu vou na direção contrária. O preciosismo com a suposta "qualidade da imagem" é uma prisão criativa.

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  4. 6 - Eu falo estas coisas não só da minha cabeça, tem aqui toda uma discussão a respeito da Indústria cultural que um cara como o Adorno (pensador da escola de Frankfurt) realizou, ou as teses dos pensadores Situacionistas a respeito da "sociedade do espetáculo", e uma leitura a história da arte que tive a oportunidade de estudar durante minha formação de Licenciatura em Artes Visuais. Tem também as pessoas com quem estou em constante diálogo já a alguns anos, seja o Pedro Paiva (joguinista), que descobri em 2014 quando eu comecei a realizar um trabalho de criar jogos com meus alunos de escolas, e fui pesquisar na internet e descobri o Pedro fazendo algo muito parecido, ou o Luiz Souza (historiador e artista), que conheço a quase 30 anos e foi meu amigo de adolescência, e outros que foram passando. Não quero exigir de ninguém que tenha as mesmas leituras que eu tenho, e muita coisa eu já nem saberia dizer de onde tirei, mas estou de certo modo colocando estes conceitos, como o de "Indústria cultural" ou "obsolescência programada" que já são discutidos por pensadores de diferentes áreas já a algumas décadas. Eu falo meio que a partir daí, deste acúmulo de reflexão, ou melhor, de fragmentos deste acúmulo de reflexões que tive acesso e que pude fazer nas últimas duas décadas pelo menos.

    7 - Então, falando especificamente do meu trabalho com jogos, eu acredito que eu vá contra a corrente sim, apesar de fazer isso (por que não haveria outra forma possível de fazer) transitando nas margens de cosias que estão na moda, como o videogame indie e o retrô. Mesmo que tanto o indie quando o retrô sejam de certo modo nichos (um maior e outro menor), eles estão sim na moda e tem crescido. Não teria como eu não me inserir neles, até por uma questão material, de acesso a ferramentas de produção e etc, como falo no texto. mas, apesar de me inserir neles eu fico meio que nas bordas, nas margens, por que não faço um videogame tão ajustado com a moda dentro destes nichos. Pelo menos, não a moda estabelecida. Eu tento subverter algumas cosias que eu vejo como ruins e que são exatamente aquelas cosais que estão na moda na indústria cultural, como por exemplo a infantilização do público. É aqui o ponto mais importante. Nas últimas décadas a indústria cultural tem trabalhado no sentido de infantilizar o público, no campo intelectual e afetivo, para assim lhe tornar um consumidor mais dócil, e mesmo exigente em termos de qualidade do conteúdo (conteúdo estético de verdade, que faça as pessoas pensarem e crescerem, e não uso a palavra como se usa hoje em dia quando se fala por exemplo "criadores de conteúdo" de internet). As pessoas estão sendo tratadas a "papinha de neném". É uma questão de se reduzir o repertório intelectual e afetivo das pessoas para que assim elas não tenham muito critério para exigir algo que tenha um conteúdo de reflexão, que lhe exija alguma reflexão e amadurecimento. Isso não é novo, já vem de muitas décadas atrás, mas chegamos agora num ponto onde se generalizou em toda a indústria cultural. Muita gente que faz jogo retrô ou Indie não sabe dessas cosias, não teve o acesso a discussões e reflexões que eu tive acesso, e por tanto reproduzem de forma inconsciente valores que reforçam essa tendência na cultura como um todo. Não eu, para mim é inconcebível fazer algo assim, por que não tem como jogar fora o que aprendi e as reflexões que fiz, não enquanto minha cabeça ainda funcionar bem. E isso me dá essa consciência de que o que estou fazendo é um pouco nadar contra a correnteza, por que o mundo está claramente indo na direção oposta, ao menos no campo da cultura, e em grande medida carregado pela indústria cultural.

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  5. 8 - Espero que tenha conseguido deixar mais claros alguns pontos, que sei que eu parto as vezes de discussões anteriores que também deixariam grande demais meu texto se eu fosse fazer toda em apenas um texto. Se por um lado eu faço meu trabalho partindo de uma premissa de “catástrofe” no campo da cultura, por outro eu vejo as pessoas de certo modo, mesmo que inconsciente, resistindo ou não se sentindo satisfeitas com o jeito que as cosias estão. Percebo gente jovem se interessando por podcasts longos, de 2 horas de duração, ou por alguma experimentação estética para além dos filtros de redes sociais. Mas parte disso ainda é uma ação inconsciente, e que não vai necessariamente amadurecer de forma a criar consciência e a entender o próprio mundo onde a pessoa está inserida. Eu tenho 42 anos, e daqui a pouco vou estar possivelmente velho demais pra conseguir acompanhar e compreender a realidade e novidade do mundo ao meu redor. Pessoas como você é que vão me substituir e, espero eu, seguir pensando e tentando entender o mundo onde se meteu. Da minha parte estou tentando deixar algo que ajude alguém, não só fazendo meus jogos, mas tentando vir aqui no blog e me forçando a escrever a respeito pra conectar os pontos e fazer uma reflexão a respeito.

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