segunda-feira, 15 de julho de 2024

Um elogio aos emuladores


Nesticle, um dos primeiros emuladores bem funcionais de Nintendinho para MS-Dos e funções que permitiam ver o funcionamento da memória do videogame enquanto executa o jogo.



 Um elogio aos emuladores


Os emuladores são o futuro do retro game, sempre foram desde o seu nascimento. Eu peguei o início da popularização da internet no Brasil, e foi lá nos idos de 1997 que descobri os primeiros emuladores de videogames. Desde então eu acompanho sua evolução, e é preciso lembrar a importância deles, e como eles foram mais do que programas mas catalisadores de comunidades na internet e a verdadeira forma de preservação da história do videogame. Mas vamos do começo.


A questão da preservação das produções sempre foi um problema nas formas de arte reprodutíveis modernas: do cinema à música muitas produções se perderam no tempo, literalmente mofaram, queimaram, se perderam completa ou parcialmente. A partir dos anos 90 a digitalização destes acervos se tornou uma realidade (ainda em processo), e também uma forma de tornar acervos de arte mais acessíveis ao público (ao menos, esta é a utopia de pessoas como eu que lidam com cultura).


O Videogame é uma mídia que já nasce digital: é o programa de computador, na fita magnética, no disquete, no cartucho de videogame, bits de zero ou um. Pela sua própria natureza digital, era de se imaginar que a preservação 1:1, ou seja sem perda de informações a partir de uma cópia “original” fosse uma inevitabilidade. A chamada “ROM”, ou “imagem” digital de um jogo de videogame é em geral uma cópia 1:1 dos dados que antes estavam nas suas mídias originais, diferente do que acontece com os já citados cinema e música, que sofrem perdas de informação quando transportados do meio analógico ao digital. Isso deu uma outra dinâmica à preservação do videogame.


Mas a preservação do videogame apresentava então outro desafio: a maioria dos jogos são feitas para o sistema A ou B, em sua maioria proprietários, detidos por empresas que desenvolveram aquele hardware específico onde originalmente funcionava aquela biblioteca de jogos específicos. Aqui entram essa maravilha construída coletivamente que são os famosos Emuladores.


Ok, sem enrrolação, o que queríamos, e ainda queremos, é jogar. Foi esse ímpeto que moveu pessoas ao redor do mundo, conectadas por uma internet ainda precária, a transferir os dados 1:1 de jogos que estavam em mídias proprietárias (o cartucho de videogame por exemplo), para um arquivo que pudesse ser transportado pela internet, os populares ROMS. Mas pra isso acontecer foi preciso um esforço coletivo e autônomo meio inédito na história da cultura: a revelia das empresas detentoras dos direitos destes jogos as pessoas colaboraram umas com as outras, doaram placas de fliperama ou cartuchos de videogame para terceiros ao redor do mundo realizarem essa transferência de dados, o que naquela época era chamado de “Dump” do jogo.


Ao mesmo tempo, programadores profissionais e amadores usavam suas horas vagas para dissecar e compartilhar informações sobre o funcionamento destes hardwares, os videogames, computadores do passado e fliperamas, para na tentativa e erro desenvolver programas que pudessem simular o funcionamento destes hardwares nos computadores modernos, permitindo assim que os jogos fossem executados. Ou seja, o desenvolvimento dos emuladores. Foi um processo gradual, com os jogos funcionando de forma parcial, as vezes sem som, com falhas gráficas, mas que foi aprimorado mais ou menos ao longo de uns 20 anos, por diferentes pessoas, fossem projetos de emuladores opensource ou não, mas sempre com muita informação sendo compartilhada.


Foi um fenômeno próprio daqueles que, como eu, naqueles tempos mais ingênuos, acreditavam que a internet era (e ainda é, mas não de forma popular) um meio de popularizar e tornar acessíveis os bens culturais á revelia de coleções privadas ou detenção de grandes empresas. Era a ideia do opensource antes de ela ser cooptada pela indústria, o que eventualmente aconteceu (como sempre acontece com tudo no capitalismo). Mas reafirmo que o importante é que criar esse acervo de roms e emuladores, de cópias 1:1 dos jogos e de programas que foram arduamente lapidados para executar estes jogos em computadores modernos, foi um esforço coletivo e voluntário nunca antes visto na cultura.


Claro que tivemos também cosias análogas na música, com o compartilhamento de MP3s, no cinema com filmes e formatos domo o DivX, mas antes vieram os jogos de computador, e estes exigiram um esforço coletivo e uma expertise técnica muito maior, e que até hoje me espanta. É um  caso a ser estudado socialmente, e que a maioria dos “gamers” pode não perceber, mas mostra o poder e a possibilidade do trabalho coletivo á revelia das grandes empresas detentoras dos “direitos de cópia”.


Bom, pra me encaminhar ao final do texto, preciso só elogiar mais um pouco os emuladores. São páticos, você guarda os jogos e o programa para executá-los num pendrive, são acessíveis e você pode encontrar estes jogos antigos em sua maioria livremente na internet, e por favor, a multinacional do videogame não vai perder dinheiro (que pena) se você jogar o joguinho que ela vendeu a 30 anos atrás e já saiu de linha. E isso me lembra, se não fosse pelo esforço coletivo e autônomo de pessoas que desenvolveram emuladores e “dumpiaram” as roms esses jogos antigos não estariam disponíveis na Steam e videogames atuais pelos sistemas oficiais. Mas não estariam mesmo.


Não fossem pelos emuladores e todo esse conjunto do que falei, não existiram pessoas que como eu desenvolvem novos jogos para estes sistemas do passado, explorando de forma renovada sua estética particular. Por que é disso que se trata pra mim, não só a nostalgia, mas entender o videogame como linguagem e o retro game como uma estética particular.


O hardware real dos videogames e micro computadores do passado vai eventualmente morrer (muitos já estão). Jogar os jogos antigos no hardware antigo real é um luxo caro, para os que colecionam ou como eu ainda guardam seus videogames antigos e os mantém funcionando. Hoje tem a opção da simulação do hardware com chipes FPGA, que conseguem uma simulação 99,8% fiel ao hardware real. Mas esta é uma opção que também custa algum dinheiro, e apensar de não serem tão fieis na execução os emuladores via software, rodando no seu “ismartefone” ou computador modesto dá bastante pro gasto, ainda mais depois de quase 30 anos de aprimoramento dos emuladores pela comunidade.


Então digo que é graças aos emuladores, e tudo que girava ao redor deles como o lance de “dumpar” os jogos em forma de “roms”, que a história do videogame das últimas décadas vai sobreviver, ou melhor, já sobreviveu. Não canso de repetir porque precisa se tornar óbvio: fruto de um esforço coletivo e autônomo que foi inédito na história recente da cultura, de voluntários, de técnicos e pesquisadores de hardware e softwares, de entusiastas destes videogames ao redor do mundo.



Adendo: Emuladores e Nostalgia


Eu gosto de sempre frisar o fato de que não sou fã dessa coisa de associar o videogame antigo apenas com nostalgia. A Nostalgia é parte da experiência humana, principalmente de envelhecer, assim como outros sentimentos contraditórios que todos nós sentimos. Mas limitar o retro game apenas a nostalgia é reduzir seu potencial.


Primeiro, nos anos 90 o que nos movia pelos emuladores não era a nostalgia, mas sim a vontade de ter acesso á jogos que para nós, em especial no terceiro mundo, eram muito caros ou se quer existiam por nossas terras. No final dos anos 90 ainda eram lançados jogos de Neo Geo, e nós jogamos coisas como “King of Fighters 99” através de emuladores dias após seu lançamento. Conforme o tempo foi passando os emuladores passaram a atrair as pessoas mais pelo fator de nostalgia dos jogos antigos, e natural que fosse.


Mas a coisa vai bem além da nostalgia. Tem o fator já citado da preservação, mas também tem inovação. Novos jogos são criados para estes sistemas, e graças aos emuladores toda sua biblioteca, do pasasdo e recente, está disponível a jogadores mais jovens que não tem qualquer relação nostálgica com estes. Ainda, fazer um jogo novo para um sistema antigo é um tipo de exploração da forma: as limitações destes sistemas é atraente para desenvolvedores atuais como eu por que elas fornecem um ambiente com uma estética particular. Muito game “Indie” atual inovador é inspirado em estéticas de jogos do passado, que por sua vez existiram por conta das limitações destes hardwares. Não fosse todo esse universo dos emuladores este jogos do passado não teriam essa sobrevida pungente, seriam bem menos populares, estariam mais na memória de pessoas de minha idade, e certamente influenciariam bem menos os produtores de games de hoje.


Então, um pedido encarecido, quando forem falar de jogos do passado ou de emuladores: não se limitem apenas ao jargão da nostalgia. Tudo bem, faz parte, então fale da nostalgia, mas não se limite a isto, vá um pouco além, que é bem mais interessante e enriquecedor.



NeoRage X, emulador completamente funcional de Neo Geo já no final dos anos 90 e funcionava em computadores modestos.




sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tempo de Lazer

 Tempo de Lazer


“Muito trabalho e pouca diversão fazem de Jack um bobão”


Dando uma brincada com a MVS de madeira.

Nos últimos 3 ou 4 anos tinha dias que eu repetia a famosa frase de “O Iluminado” em minha cabeça, tamanha minha neura e estresse. “Desempregado” (entenda as aspas como quiser), sobrevivendo dos “freelas” (o famoso bico) e de meus projetos de games (o artesanato que complementa a renda), trabalhando por 12 ou mais horas diárias, sem parar nos finais de semana, chegou um momento agora no final de 2023 que eu senti que precisava parar por que já me sentia adoecer. Estou tentando trabalhar 8 horas no máximo, e depois tiro tempo pra algum tipo de recreação fora do computador ou celular. Também tenho me "forçado" a descansar nos finais de semana, repousando ou fazendo alguma atividade da casa ou recreativa.


Também diminuí minha neurose em relação ao trabalho nas redes sociais. Explico melhor: dizem que gente como eu precisa alimentar as redes todos os dias, com este ou aquele conteúdo, em horário X ou Y, com a música Z, assim assado, para se manter sendo visto, “existindo” como persona virtual. Eu estava começando a comprar a ideia, natural pois eu faço tudo incluindo a divulgação do meu trampo e sobrevivo dele, mas a verdade é que a coisa não é bem assim. Já me sentia criando dependência da quantidade de “likes” e visualizações de minhas postagens, como se elas fossem reverter em grana na conta bancária.


A verdade: as redes sociais são menos uma ferramenta a serviço do nosso alcance ao público, e mais uma necessidade artificial, uma obrigação. Meio que abandonei minha conta do twitter: era onde mais as pessoas “engajavam” comigo. Fez grandes diferença na minha renda? Não. Mas vamos do começo, como de costume minha cabeça ficou esse tempo todo maquinando a respeito (e enquanto eu jogava um videogame de luta, veja só), e aqui vão algumas palavras para meu eu da posteridade, a qualquer um que se dê o trabalho de ler, e à crítica roedora dos ratos (agora digitais e de IA).


Apesar da minha intenção de viver da minha arte, trabalhar com o que gosto, “viver o sonho” (se você for mais romântico), no fundo eu também me enquadro na grande massa de pessoas que tem se obrigado a “monetizar” seus gostos, o tempo de lazer, e parte da vida privada nas redes sociais (alguns mais que outros). E isso, claro, me gera conflitos internos, pois como não geraria?


Lembro quando a Ju me passou textos do João Bernardo, anos atrás no site Passa Palavra, sobre a questão do Lazer e trabalho no capitalismo. E é ainda mais antiga esta reflexão a respeito do quanto o capitalismo tende a invadir o espaço do lazer, capitalizando e fazendo as pessoas “trabalharem” nos momentos de lazer, ou seja, gerar mais valia e girar capital enquanto “descansam”. Mas não dava de prever que isso se daria não como uma atividade “extra” ao trabalho assalariado de antes, mas como um substituto precário à ele. Gerar capital para as tais “big techs” no seu horário de lazer virou tarefa para desempregados, melhor dizendo sub empregados da forma mas precária, sem qualquer vínculo empregatício.


Não é preciso ser um intelectual em sociologia e economia (eu certamente não sou) pra perceber o seguinte: o capitalismo tem destruído os postos de trabalho mais rápido do que pode gerar novos para substituir os que não mais existem. E isso admitem os próprios analistas do G7 (ou G8? Nem sei mais...), e do fórum econômico mundial, ou seja, cabeças pensantes dos gestores do capitalismo e que tentam bolar formas de salvar este sistema diante do colapso (econômico, social, e até ambiental). Segundo os mesmos, agora os saltos técnicos vem, acabam com empregos em nome da redução de custos, e criam alguns poucos no lugar, com um resultado final negativo em termos de geração de emprego. Ainda, está claro, modificam outros postos de trabalho que não se extinguiram de forma a precarizar estes mesmos, o que deve ficar ainda mais evidente nestes anos de avanço da tecnologia de IA’s. Críticos ao capitalismo já previam isto, e se parar pra pensar agora fica um tanto óbvio desde o neo-liberalismo: não sobrou muito onde reduzir custos a não ser na mão e obra, e as grandes empresas não estariam investindo milhões no desenvolvimento de IA’s para aumentar estes custos, mas obviamente para o contrário.


E aqui entro eu e mais uma pá de gente ligada ao videogame: gente que ganha trocados no youtube, falando do assunto, jogando jogos ao vivo para outros assistirem, desenvolvendo joguinhos (de novo como eu), e “trabalhando” de forma não remunerada nas redes sociais na esperança de alcançar um público maior e aumentar sua renda. Por quanto tempo aguentaremos ou teremos essas migalhas? Só sabemos que por pouco tempo. Somos ao mesmo tempo produto (junto com as demais pessoas) das redes sociais (sim, eles nos vendem para a propaganda e coleta de dados), e também produtores não remunerados destas plataformas (sem nós elas não tem nada a oferecer). Que perfeição, mais valia absoluta.


Isso é o que “sobrou” pra cada vez mais pessoas, e me sinto parte destas. Este quebra-galho precário, enjambrado e incerto, vai muito em breve (mesmo) rarificar com a expansão das IA’s, que foram projetadas exatamente para diminuir custos de produção no campo da cultura: falo da produção de música, vídeo, games, e da propaganda, ou seja basicamente todo tipo de entretenimento que se consome hoje em dia. E aja entretenimento pra tanta gente sem perspectiva de futuro no capitalismo. Para isso as redes sociais são eficazes, tem pra todo gosto: ou você pensa que o boom de teorias malucas estilo terraplanismo (todas as espécies de “terraplanismos”) são mais que diversionismo e entretenimento para manter incautos na alienação de toda esta máquina?


Pra terminar, vem sempre alguém perguntar: “tá, mas e aí, o que fazer?” Se eu tivesse a resposta meu amigo… Ludismo, ou sabotar a máquina, é alguma coisa, dá alguma sensação de que temos algum controle, mas não é realista em termos sociais mais amplo. Renda universal para todos parece ilusão, promessa vazia não virá, ao menos na maioria dos países, pois os grandes capitalistas não estariam nessa sede de reduzir custos com a força de trabalho humano se fosse pra gastar dinheiro com renda universal para desempregados, não faria sentido algum. Uma solução óbvia seria a redução da jornada de trabalho para 6 ou até 4 horas, sem redução de salário, pois isso faria que menos empregos dessem conta de mais empregados. De novo, essa seria uma solução racional em termos sociais, mas a racionalidade no capitalismo é sempre em termos individuais: se tudo o que é feito é para aumentar a mais valia extraída do trabalhador então os capitalistas nunca vão aceitar uma medida que vai na direção oposta.


Nada do parágrafo acima é uma grande ideia original, essas soluções são sugeridas a décadas como se a sociedade no capitalismo fosse algo racionalmente orientado ao coletivo, o que não é. As respostas alternativas temos à tempos, mas elas não se dão de forma individual, e a questão que nos enche de medo não é "o que fazer" mas sim o “como fazer". Individualmente estamos todos nos segurando em botes salva vidas deste "Titanic" econômico e social, e não sou eu que vou recriminar qualquer pessoa por tentar sobreviver de seu trabalho como dá nas redes sociais (como eu também o faço de certo modo). Coletivamente fica cada dia mais claro: apenas uma revolução profunda que derrube o capitalismo e reordene completamente as prioridades sociais pode evitar a barbárie que já está em curso. É isto ou seremos todos umas peças completamente dispensáveis para os grande capital (se já não somos, visto que alguns bilionários neomaltusianos adoram falar que tem gente demais no mundo: no fundo eles não sabem bem o que fazer com essa “sobra” de de força de trabalho). Em breve seremos dispensáveis até mesmo em nossos “lazeres”. Então, em primeiro lugar, é preciso ter consciência de classe.


Bom é isso, escrevi por que pensar me faz sentir vivo, e escrever é parte importante do pensar.