O método é parte do trabalho, e eu escolho de forma consciente.
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Me deu vontade de explicitar aqui algo do meu “método” de criar arte, que talvez poucas pessoas percebam. Não por "culpa" de ninguém, nem uma falha minha, mas é que tem algo do meu trabalho que não está apenas no trabalho em si, mas já pelos meios em que o trabalho é produzido. Essa é uma discussão já realizada no meio das artes, não é nova, mas meu esforço é falar menos com o público especialziado, e sim com as pessoas em geral.
Indo
direto ao ponto: eu nunca esperei pelas condições ou materiais ideais para
realizar uma ideia de criação artística, e desde que me lembre adapto os
materiais e ferramentas para tornar a coisa possível. Vou exemplificar: se eu não
tinha uma caneta e papel especial, desenhava com esferográfica e folha de
formulário; se não tinha um grampeador ideal para fazer livrinhos, criava
uma técnica pra fazer o livrinho com grampeador comum; se não tinha banda para
tocar e gravar minhas composições, gravava e programava os instrumentos no
computador, gravando guitarra e voz no banheiro, dentro de caixas de papelão
com microfone de PC, editava as faixas e criava um CD artesanal com minhas composições; ou quando não tive equipe com programador, ou a expertise de programação, para me
ajudar a criar um game, utilizei uma “engine” simples qye me era possível
de aprender e utilizar, só pra dar alguns exemplos. Eu faço com o que tenho a
mão.
E já a
muitos e muitos anos, décadas, que eu tenho consciência disso: meu método não é
o estilo/técnica A ou B, fazer desenho ou pintura, usar esse ou aquele
material, não, meu procedimento é aquele “terceiro mundista” de tirar leite de pedra. O que
define meu trabalho é que eu não me prendo a técnias, ferramentas ou materiais
específicos, mas realizar as coisas sem ter dinheiro, adaptando e por vezes até
subvertendo os materiais e seus usos.
Sei
também que isto não é uma exclusividade minha: esse é um
procedimento típico no terceiro mundo. Não temos como esperar pelos
equipamentos ou ferramentas ideais, que aqui demoram ou nunca chegam, então
usamos a criatividade para adaptar e fazer do jeito que for possível.
Meu amigo
também artista Luiz Souza é quem melhor definiu essa “índole” ao redigir o “Manifestoda Arte Anacrônica”, em 2022. Claro que ele traz coisas muito além, captando e sintetizando muito mais do espírito do nosso tempo, na medida em que o
capitalismo autofágico se torna mais e mais decadente e remendado com bugigangas
tecnológicas. No terceiro mundo nós sempre reciclamos o lixo das metrópoles,
tanto o lixo material quanto o imaterial, principalmente da indústria cultural imperialista.
Somos catadores de lixo cultural que emanam das “metrópoles” para nós, as “colônias”.
O trabalho do Luiz, o meu e de outros artistas que conhecemos, se enquadram
como arte anacrônica por vários de seus motivos. Mas aconselho a ler o
manifesto no link acima, para melhor refletir sobre estas questões.
Sendo assim, meu procedimento, a forma de adaptar e usar os materiais para tornar os trabalhos possíveis dentro dos meus limites de tempo, físicos, e de grana, é parte integrante do trabalho, e não apenas o resultado final. Consciente disso, a tempos que tomei por tarefa mostrar um pouco desse procedimento para dar o exemplo, principalmente para aqueles mais jovens e/ou oriundos da mesma classe social. Sem arrogância, eu encaro isso como tarefa pedagógica. Me esforço a fazer isso sem realizar uma apologia à precariedade, pois é claro que quando tenho acesso a melhores materiais e ferramentas eu as tomo em minhas mãos. Nem dispensaria uma condição financeira melhor para viabilizar meus projetos, mas não posso esperar sentado por esse milagre, pois a vida passa, e eu tenho nececidade de criar.
Muitas
vezes até faço questão da coisa mais precária, para não abandonar e explicitar esta
face pedagógica e independente de meu trabalho - Por que fazer os livrinhos de
forma artesanal se posso pedir eles prontos na gráfica? Por que criar
instrumentos musicais com sucatas, se eu poderia comprar materiais e
ferramentas de luthieria? Por que fazer um game para computadores dos anos 80
se nos computadores modernos não há limitações gráficas e de memória? - Uma para
reduzir custos/tempo/estrutura de produção, e outra para mostrar que dá e é
desejável fazer com autonomia e sem esperar as condições perfeitas. Nada contra
minha produção alcançar algum “sucesso” e me render uma grana digna (o que
ainda não acontece), mas dane-se se meu game, ou qualquer outra arte minha, não
pode circular nos meios da moda ou ser considerado um produto "profissional" aos moldes do mercado.
E isso me
lembra algo que já falei antes mas quero repetir: a indústria, em especial a
indústria cultural, é bastante eficaz em criar “padrões de qualidade” que
alienam as pessoas de classes inferiores da produção artística. Então, não se
prendam por isto, dane-se os padrões da indústria, o que eles de fato tem de
qualidade de produção que o dinheiro pode comprar, perdem em autenticidade e
diálogo com a realidade das pessoas, pois miram em "públicos” imaginários.
Pra
fechar, já que atualmente me dedico prioritariamente à criação de games, é
preciso lembrar que faço este jogo retrô, anacrônico, aos moldes do videogame
dos anos 80 e 90, muito menos por nostalgia, e mais por esta índole terceira mundista.
Eu utilizo um motor de jogo como o MPAGD, e faço jogos para o ZX Spectrum e o
MSX, não por saudade do que não vivi (e de fato não vivi, apesar de velho e ter conhecido videogames com o Atari eu só fui conhecer estes
computadores dos anos 1980 e seus jogos a partir dos anos 2000, através da internet e
emuladores), mas por que me é acessível: a “precariedade” e limitações de
memória me obrigam a um escopo de projeto possível de ser realizado sem ter muito
tempo ou dinheiro para tanto.
Sim, eu
sou nerd de videogames antigos, e também adoro o desafio de fazer os jogos dentro das
restrições gráficas e de processamento destes. Mas como artista consciente do
meu método, e de que ele não se desvencilha do produto final, sou movido também
por motivos estéticos e éticos da arte. Eu “gosto” de usar o material precário,
mas não é apenas por gosto, nem apenas por espírito “ecológico” de reciclagem
como no caso de meus instrumentos musicais, mas sim por motivações de cunho
social, de classe social, de condição dentro do mundo em que temos de viver, e
de uma necessidade de tirar o máximo do mínimo.
Interessante. Compartilho das reflexões. Faço os jogos pro Atari por ser mais simples e possível para mim. Também penso no acesso e na nostalgia. Na possibilidade de hoje poder produzir um cartucho e esse rodar na máquina de 40 anos atrás. Subverter a corrida pelos novos hardwares que só acessam os abastados. E na simplicidade e praticidade de jogar. Não precisar baixar atualizações, internet, esperar no lobby para jogar etc. Abraços. (Escrever nesse blog e comentar aqui nessa caixa que nem funciona direito no celular faz parte dessa conversa, em temoos de redes sociais de conteúdo efêmero).
ResponderExcluirOpa, valeu pelo comentário Salvio. Sim, verdade, é essa coisa do acesso ao game, em todos os sentidos, que nos interessa, e ir contra a corrente da obsolescência programada da tecnologia em games. Valeu por comentar, mesmo que seja no celular onde o blog fica com a diagramação esquisita, hehehehe. Apesar dos seus limites, o blog ainda é um espaço menso efêmero que as redes sociais. Sem querer acertei em chamar meu blog de "diário", lá em 2014. Abraço.
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