Hoje eu inauguro uma nova seção aqui no Blog: Tutoriais de ARGS (Arcade Game Studio). Eu vou a partir de agora, e ao longo de 2017, elaborar um tutorial passo a passo de como fazer um game de plataformas no ARGS. A intenção é que o tutorial seja acessível até mesmo pra quem tem pouca familiaridade com os games (ao menos com games da era 8 e 16 bits).
Em simultâneo, vou fazer um game simples e curto, que por enquanto estou chamando de "Jack Arcade". Em outras palavras, para fazer o tutorial me obrigarei a produzir conteúdos originais (gráficos, sons, personagens), tudo de maneira simples e rápida. Esse é meu terceiro projeto de game em simultâneo (será que eu dou conta?). Também por este motivo os tutoriais sairão aos poucos, se eu conseguir, um por semana (ou pelo menos um fragmento por semana).
Por enquanto é apenas o tutorial introdutório, mas muito em breve mostrarei como criar o primeiro personagem controlável no game.
Edit: Eu tinha desenhado esse personagem e uns tiles de cenário para o tutorial, mas achei que estava ficando complexo demais pra algo introdutório, e por isso que deixei em stand by e fiz outros mais simples.
Reta final na escola, fechamento de notas, conselho de classe, e prova final. Antes de fazer uma avaliação do ano, quero relatar a última atividade que realizei com os alunos. Pra não fugir do tema das distopia, e precisando de um filme que fosse curto, resolvi passar para meus alunos o EP02 da primeira temporada de Black Mirror, com o título 15 milhões de Créditos. Pra quem não conhece é uma série com poucos episódios, cada um deles com um arco fechado de história, e situados em diferentes versões de distopias tecnológicas. Cada episódio é um pequeno filminho de quase uma hora. Então, depois de assistirmos, e debatemos sobre o filme, perguntei o seguinte:
1 - Identifique dois elementos da história que são contados pelas imagens e sons, não estritamente pelo discurso, e explique com suas palavras.
2 - Identifique um elemento da narrativa que o filme não explica, deixando em aberto para nossa imaginação completar. Conte como você completaria a história com suas palavras.
O que eu queria era que eles pudessem entender que forma e conteúdo estão totalmente associados na arte, em todo tipo de arte. No caso do cinema, são as formas de se narrar um a história através de sons e imagens em movimento que encadeiam ações, paisagens, fragmentos de vida dos personagens, para nos transportar para algum mundo imaginário, por vezes não tão distante de nossa realidade objetiva. Bom, no final fiquei bem feliz com as respostas deles, tanto que anotei algumas pra postar aqui no blog. As respostas estão sintetizadas abaixo, os trechos em aspas estão escritos exatamente como nas palavras do aluno, e entre par~enteses estão comentários meus:
Resposta 1:
- A vida naquele lugar faz eles perderem a noção de tempo
- Como aquele mundo era visto pelo protagonista: monótono e chato, como se ele não vivesse e sim apenas existisse.
- "Eles passavam vídeos ridicularizando os gordos para que colocassem medo em todos que estão na bicicleta, por que sem as bicicletas não teria energia" (os gordos eram a escória, a classe mais baixa que tem função de manter os "da bicicleta" com medo de perder aquela vida também cruel, pois existia algo ainda pior)
Resposta 2:
- Eles estão lá por que acabaram com a água do planeta, precisam de energia pra gerar água.
- Fora daquele lugar vivem os miseráveis, e quando fazem 21 eles tem a "oportunidade" de ir para as bicicletas e ter uma vida "menos" miserável.
- Uma distopia onde se depende da tecnologia. Aos 21 nas bicicletas, mas ali só existem jovens. Talvez aos 30-35 eles fossem obrigados a comprar um aplicativo que "possibilite" (obrigue) formar família (ideia interessante, e teria sentido naquele mundo. A constituição da família seria mais uma forma de controle e reprodução daquele tipo de existência)
- O mundo chegou aquele ponto por que nós gastamos todos os recursos naturais
- "Os recursos do planeta acabaram e os menos favorecidos foram levados para a bicicleta"
- Não mostra quem cultiva a comida: Quem sabe as pessoas mais velhas são levadas para um lugar onde se cultiva a comida.
- O mundo lá fora não está destruído, está na mesma, mas as pessoas "de dentro" devem acreditar nisso para ficarem ali naquela vida.
- Acabaram os combustíveis fósseis e só sobrou a força motriz humana
- Existem outros "prédios" (complexos) como aquele por todo o planeta, e as pessoas estão ali como escravas, "uma escravidão meio que por escolha, pois eles acreditam viver apenas em função das milhas.
- Não fica explicita a relação daquele futuro do filme com nosso presente: tem os excluídos por serem "diferentes" (na verdade "improdutivos") e as pessoas "vivendo" em ambientes virtuais.
- Não mostra o que acontece depois: que os dois protagonistas poderiam se reencontrar e ver como é o mundo lá fora (alguns alunos sentiram falta de um "happy end" a lá Disney ou Spielberg)
- Destruímos o planeta e tivemos de nos mudar para uma estação no espaço (pouco provável pelo filme)
- Alienígenas vieram e destruíram tudo no planeta (o velho clichê que põe a culpa da destruição num agente externo)
Foi muito legal que tiveram respostas que eu nem tinha imaginado, por exemplo, a ideia de que o mundo fora daquele complexo apresentado no filme estaria OK, mas para manter as pessoas daquela sociedade em controle era preciso acreditar num mundo destruído. Acho que fui feliz em fazer apenas estas duas perguntas para os alunos, e a pergunta "criativa", de pedir pra eles criarem explicação para coisas que não estão no filme, obrigou eles a pensar em algumas coisas (obvio que ouve mediação prévia, conversamos sobre alguns desses aspectos antes). Em fim, penso que o legal desta série é que é impossível assistir ela e não sair com algumas perguntas na cabeça.
Algumas vezes já falei do quanto tenho pesquisado na direção de incluir diferentes referências culturais nos conteúdos dos games. Sem querer cair naquela de fazer "amontoados de citações", é claro que isso tem de acontecer naturalmente: cria com qualidade quem também lê, assiste, e ouve o mundo. Fazer games que se limitem apenas a referenciar o universo "gamer" é uma cilada frequente no desenvolvimento independente.
Continuando minhas reflexões ensaísticas sobre o conteúdo nos games, quero falar aqui de um jogo muito especial, e que sabe criar seu universo próprio de personagens carismáticos apesar de nonsenses.
Tcheco no Castelo do Sarney
Tcheco é um game independente recheado de referências aos vídeo games de 8 e 16 Bits, com jogabilidade simples e desafiante. Um ótimo exemplo de game design, um jogo todo na medida. Vocês com certeza vão encontrar várias resenhas a respeito do quão bom o game é, e menções a estas referências, além da fidelidade com as limitações do NES. O Game pode ser baixado em sua versão gratuita no gamejolt, ou comprado na versão estendida pela rede steam.
Mas o ponto que quero destacar aqui é o da narrativa e do universo ao redor do game. O personagem surge no final dos anos 90, como uma temporada de animação independente exibida em um canal comunitário no Rio Grande do Sul. Seu criador, Marcelo Barbosa, manteu o personagem vivo, sempre fazendo outras animações, hacks e mods de games, até realizar o game do qual falamos.
Com Tcheco, Barbosa consegue criar um universo rico, com personagens que tem diferentes personalidades, todas calcadas num humor um tanto nonsense, também moldado pelas limitações técnicas de se fazer uma animação independente na época (reciclagem de frames, muitos quadros estáticos, dublagem toscas, etc). Não me parece coincidência que coisas como South Park, Hermes e Renato, entre outros produtos da cultura pop de seu tempo, surgissem na mesma época.
Não que Tcheco seja vazio do conteúdo cultural ao redor de seu criador, muito pelo contrário, pois quem viveu essa época pode perceber sua "contaminação" por animações como Beavis and Butthead, Space Ghost Coast to Coast, as vinhetas da MTV, entre outras. Então outra forma, de tantas existentes, de se criar um conteúdo interessante para um game, é criar personagens com um universo próprio, alimentar este universo com suas referências culturais, de todas as formas que puder: produzindo games, hacks, animações, ou outros que eu desconheça, assim como fez Barbosa por mais de 15 anos.
Baixe o game, ou compre na Steam, vale a pena, e só custa 99 centavos.