sexta-feira, 14 de abril de 2023

Metáforas - Metaphors

(English version on the Bottom)

Metáforas

 

Bruxólico é um vídeo jogo + livro ilustrado feito com o coração, e não é nenhum “fast food”. Sei que posso estar falando o óbvio, mas é preciso falar e desenvolver mais algumas palavras a este respeito.

 É feito com o coração, além de meu cérebro e vísceras, por que é feito por um artesão, e não em uma fábrica. Não em uma linha de montagem do mercado, por trabalhadores alienados do produto final ou de todo o processo de produção, como nos explicou bem Marx. Não se baseia em tendências de mercado, por que se dependesse destas se quer este trabalho existiria. Também não existe apenas pelo muito necessário retorno financeiro, que eu preciso para sobreviver como artista, mas que se dependesse de retorno do tempo e dinheiro investido não pagaria mais nem de longe os oito meses de trabalho em tempo integral que dediquei este projeto, e nada disso me é surpresa ou novidade.

 E é exatamente pelo citado acima que este trabalho de arte, na forma de videogame e também livro, não é "fast food". E por tanto, não é de consumo rápido, mas é para ser apreciado dentro de certo espaço de tempo. Para quem cria jogos eletrônicos pode ser um tanto angustiante, mas sei que vai levar alguma água no moinho para que mais pessoas realmente descubram do que se trata o Bruxólico, e que ele repercuta como eu espero no mundo. Mas também não é “biguimeque” por que tem muitas camadas desde sua concepção à produção, especialmente por ser inspirado na obra de Cascaes, Peninha, e outros artistas e cultura popular aqui da Ilha de Desterro. E isso me faz lembrar o quanto o Cascaes ainda é muito subestimado, mesmo entre muita gente que conhece algo se sua obra, me obrigando a falar algumas coisas mais.

 Vamos falar a verdade, tem gente que acha que o Cascaes era um "simplório". Que só por que ele escolheu como objeto de estudo e criação o folclore e costumes do povo pobre e desconectado da modernidade do capitalismo industrial e urbano, ele então devia ser também um "Ingênuo". Assim pensam muitos dos “ricos” e poderosos, mas também parte dos nossos Doutos. Não podiam estar mais enganados. Pra começo de conversa, o Cascaes era professor de desenho técnico, e dentre outras coisas, antes de produzir os desenhos que nós conhecemos, fez diversos estudos experimentando distintos estilos gráficos, percorrendo diferentes épocas da história da arte. Por fim, concluiu que as representações destas histórias não podiam ser feitas com perspectiva matemática, ou um estilo realista, mas com um desenho de perspectivas intuitiva, ou múltiplas perspectivas. Pelos seus estudos certamente concluiu que se os desenhos fossem "foto realistas" com certeza perderiam muito do simbolismo e metáforas que eles precisavam preservar de seu material fonte: a cultura popular.

 Permitam-me explicar de maneira a dar um exemplo: com que idade você percebeu que a história de "Chapeuzinho vermelho" era algo bem mais que uma fábula infantil? Todas as "Estórias da carochinha", ou "Estórias da Mãe Ganso" tem origem no medievo europeu, e são carregadas de duplos sentidos e mensagens que dizem respeito ao modo de vida das pessoas naquele tempo e espaço geográfico. Aos poucos, a mensagem vai sendo reelaborada, e em especial as referências metafóricas são retiradas ou modificadas, assim como aconteceu na compilação destas histórias nos séculos XVIII e XIX, e recentemente ainda mais com as adaptações da Disney.

 Quanto mais eu conheço, e ainda tenho muito o que conhecer da obra do Cascaes, e também do Peninha, mais fica claro o quanto eles estavam articulando a linguagem de modo crítico e antenado ao seu tempo. O Cascaes fazia críticas a exploração imobiliária predatória da Ilha, e isso é bem conhecido e representado no desenho com o título "A Bruxa Grande", que representa esta criatura com pernas feitas de edifícios, pisando e destruindo as antigas casas e modos de vida do povo que aqui vivia, enquanto excreta dinheiro. Ou ainda, em "Eleição Bruxólica", com as criaturas segurando uma corda que as liga e conecta, as prende, umas as outras. Isto, sem contar todo o simbolismo mais sutil e subconsciente nas formas e em detalhes nas imagens, que são difíceis de se perceber nestas reproduções que temos na internet, lembrando que alguns dos desenhos originais são grandes, bem brandes, mais ou menos equivalente ao tamanho A2.

 Imagino que em outras imagens o Cascaes poderia até estar zombando figuras específicas, mais no estilo Dante Alighieri quando este coloca seus desafetos em lugares específicos do Inferno e Purgatório dependendo de seus pecados em vida. Por vezes fico com a sensação de que algumas figuras podem ser até mesmo auto biográficas, o que sinto também diante de alguns dos desenhos do Peninha. José Gelci Coelho, mais que um discípulo do Cascaes, o que já não foi pouco, um artista com uma obra ainda a ser preservada e conhecida. Ou, como disse Luiz Souza na revista Anacronia Nº1, o "Boitatá Elétrico", o elo perdido entre a tradição do Cascaes e a contra cultura dos anos 60.

 Peninha tem desenhos fantásticos, e eu só consegui ver uma parte do seu acervo de desenhos, antes que ele partisse. Dentre estes, há uma série de Boitatás e M'boitatas, e acho interessante como eles dialogam com as questões da sensualidade. Também podia ver ali algo do Peninha, quase como se alguns daqueles Boitatás fossem expressão do que ele sentia no momento da criação. Pra não me alongar mais, deixo na sequencia duas imagens destes desenhos, a primeira intitulada "Boitatá assanhado e a pedra sensual", e o segundo "A serpente e a sereia", que quando ele nos mostrou contou, ou inventou (e tinha diferença para o Peninha?) a história que eu reinterpretei no Bruxólico, das Brumas da Lagoa do Peri.

 Com fontes de inspiração tão ricas, só pra dar alguns exemplos, eu também precisava trabalhar as camadas de leitura de Bruxólico, e assim honrar os mestres. Sem rodeios, as bruxas não são apenas bruxas, o poço não é apenas um poço. As metáforas que estão em Bruxólico podem muito bem servir para as mazelas sociais e políticas que vivemos nestes últimos anos, desde os golpes políticos imperialista em toda a América Latina até a ascenção da extrema direita fascista em todo o mundo capitalista (não por coincidência, pr quem conhece algo de história).

 É, Bruxólico está ai pra quem quiser jogar e ler meu trabalho para criar suas próprias conclusões e analogias. Apenas tenha em mente de que há algo mais ai que um jogo de videogame no seu sentido mais vulgar, e que nem Cascaes, Peninha, a cultura popular, e meu trabalho, são assim ingênuos ou simplórios. Fica a dica.


Amaweks


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Franlin Cascaes - A Bruxa Grande (The Big Witch)



Franklin Cascaes - Eleição Bruxólica (Witchlish Election)


Peninha - Boitatá assanhado e a pedra sensual (Eager Boitatá and the sensual stone)



Peninha - A serpente e a sereia (The Serpent and the mermaid)


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Metaphors

  

Bruxólico is a video game + illustrated book made with heart, and it's not "fast food". I know I might be stating the obvious, but it's important to explain and expand upon this.

It's made with my heart, as well as my brain and guts, because it's made by a craftsman, not in a factory. Not on a market assembly line, by workers alienated from the final product or the entire production process, as Marx explained well. It's not based on market trends, because if it depended on it this work wouldn't exist. It doesn't exist solely for the financial return that I much need to survive as an artist, but if it came, it wouldn't even come close to paying for the eight months of full-time work I dedicated to this project, and none of this is a surprise or novelty to me.

And it's precisely because of the above that this work of art, in the form of a video game and also a book, is not "fast food". It's not for quick consumption, but it's to be appreciated within a certain amount of time. For those who create video games, it can be a bit distressing, but I know it will take some effort for more people to truly discover what Bruxólico is about, and for it to have the impact I hope for in the world. But it's also not a "Big Mac" because it has many layers from its conception to production, and especially because it's inspired by the work of Cascaes, Peninha, and other artists and popular culture here in the Island of Desterro. And this reminds me of how much Cascaes is still underestimated, even among the few people who know something about his work, forcing me to say a few more things on teh subject.

Let's be honest, there are people who think that Cascaes was a "simpleton". Just because he chose folklore and the customs of the poor and disconnected from the modernity of industrial and urban capitalism as the object of his study and creation, they believed he must also be "naive". This is what many of the "rich" and powerful, but also some of our scholars, think. They couldn't be more wrong. To begin with, Cascaes was a technical drawing teacher, and before producing the drawings we know, he made various experimental studies exploring different graphic styles, spanning different periods of art history. Finally, he concluded that the representations of these stories could not be done with mathematical perspective or a realistic style, but with an "intuitive perxpective", or "multiple perspective drawing". Through his studies, he surely concluded that if the drawings were "photo-realistic", they would certainly lose much of the symbolism and metaphors that they needed to preserve from their source material: popular culture.

I have a good example to ilustrate something about the symbolismo of folk culture: at what age did you realize that the story of "Little Red Riding Hood" was more than just a children's fable? All the "Bedtime Stories" or "Mother Goose Tales" originated in medieval Europe and are loaded with double meanings and messages that relate to people's way of life in that time and geographic space. Gradually, the message is re-elaborated, and especially the metaphorical references are removed or modified, as happened in the compilation of these stories in the 18th and 19th centuries, and more recently even more so with Disney adaptations.

The more I get to know, and there is still much to know about the work of Cascaes and Peninha, the clearer it becomes to me how they were articulating language in a critical and tuned way to their time. Cascaes made criticisms of the predatory real estate exploitation on the Island, and this is well known and represented in the drawing titled "The Big Witch", which represents this creature with legs made of buildings, stepping on and destroying the old houses and ways of life of the people who lived here, while excreting money. Or even in "Witchlish Election", with the creatures holding a rope that connects and ties them, holding each other down. Not to mention all the more subtle and subconscious symbolism in the forms and details in the images, which are difficult to perceive in these reproductions we have on the internet, remembering that some of the original drawings are large, very large, roughly equivalent to size A2.

I imagine that in other images Cascaes could even be mocking specific figures, in the style of Dante Alighieri when he places his detractors in specific places in Hell and Purgatory depending on their sins in life. At times, I get the feeling that some figures may even be autobiographical, which I also feel in some of Peninha's drawings. José Gelci Coelho, more than a disciple of Cascaes, which was already quite a bit, an artist with a work still to be preserved and known. Or, as Luiz Souza said in Anacronia Magazine Nº1, the "Electric Boitatá", the missing link between Cascaes' tradition and the counterculture of the 60s.

Peninha has fantastic drawings, and I was only able to see a part of his collection before he passed away. Among these, there is a series of Boitatás and M'boitatas, and I find it interesting how they dialogue with questions of sensuality. I could also see something of Peninha there, almost as if some of those Boitatás were an expression of what he felt at the moment of creation. To not drag on, I will leave two images of these drawings in the sequence, the first entitled "Boitatá assanhado e a pedra sensual" (horny Boitatá and the sensual stone), and the second "A serpente e a sereia" (the serpent and the mermaid), which he showed us and told a story, or invented (was there a difference for Peninha?), that I reinterpreted in Bruxólico, about the Mists of Peris Lagoon.

With such rich sources of inspiration, just to give a few examples, I also needed to work on the layers of reading in Bruxólico, and thus honor the masters. Without beating around the bush, the witches are not just witches, and the well is not just a well. The metaphors in Bruxólico can very well serve for the social and political ills we have experienced in recent years, from the imperialist political coups throughout Latin America to the rise of fascist far-right in the capitalist world (not by coincidence, for those who know something of history).

Yes, Bruxólico is there for anyone who wants to play and read my work to create their own conclusions and analogies. Just keep in mind that there is something more there than a video game in its most vulgar sense, and that neither Cascaes, Peninha, popular culture, nor my work are so naive or simplistic. That's the tip.


Amaweks




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