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Bruxólico: Inspirações e reflexões.
Já faz algum tempo que tenho o desejo de
fazer um jogo inspirado na cultura e folclores tradicionais aqui do lugar onde
nasci, cresci, e tenho vivido. Em 2019 cheguei a realizar uma “demo” (versão
inacabada) da primeira fase do jogo, para computadores modernos e em gráficos ao
estilo 16 Bits do Mega Drive. O jogo já tinha o nome de Bruxólico, e toda a
ideia geral ao redor da história do poço sem fundo estava definida na minha
cabeça. Mas tive de deixar a empreitada adormecida em prol de finalizar outros
projetos iniciados anteriormente. Agora, finalmente, posso apresentar o
resultado final, amadurecido e lapidado, e multi-linguagem, ou multimídia se
você preferir.
Esse foi, até o momento, meu projeto mais
ambicioso. Não só por que foi um jogo grande para os padrões dos que realizei
antes em computadores de 8-bits, mas por conta de minha busca de fazer “algo
além” de um jogo. Acredito que jogo e livro ilustrado, assim como outras artes
relacionadas a ele, se complementam, e juntos tem um efeito diferente do que se
apreciados individualmente. Foram 8 meses de trabalho intenso por 8, ou até 14
horas diárias, 5, 6, as vezes 7 dias por semana projetando, programando,
fazendo gráficos, compondo músicas, escrevendo, e ilustrando, entre outras
produções e pós-produções que o trabalho autoral e independente exigem.
Para a narrativa do Livro Ilustrado eu
busquei me inspirar nos grandes, como Saint-Exupéry ou Lewis Carroll, mesmo
sabendo que não posso chegar a seus pés. Pra mim a leitura precisava funcionar
com camadas suficientes para interessar a uma criança e também a um adulto.
Também, funcionar tanto isolada como em conjunto do jogo, apesar de que apenas
a última opção dá o panorama completo da história e personagens. Por isso não
me prendi em descrever demais as criaturas, que estão detalhadas nas
ilustrações, nem as cenas de ação, que são exatamente a experiência do jogo.
A ideia de leitura em camadas, utilizando
as bruxas e todo o universo da história como metáforas, também visa honrar a
obra de Franklin Cascaes, principal inspiração artística para a criação do
jogo. Sua obra não só retrata costumes e lendas daqui, mas cria e utiliza
destas como metáforas para expressar sua visão de mundo. Sem pretender fazer
aqui uma biografia, mesmo que breve, é preciso sintetizar quem foi e a
importância de seu legado.
Franklin Joaquim Cascaes (1908-1983)
dedicou a vida a uma obra que não só registrou uma cultura local, de origem em
certa medida Açoriana, como criou todo um imaginário e uma arte própria. Ele ia
com sua Kombi até as comunidades antigas da Ilha e lá fazia um estudo de campo
dos costumes e lendas entre as pessoas. Depois, produzia esculturas, desenhos,
e contos, que retratavam essa cultura. Por fim, retornava a comunidade e lá
fazia mostras e exposições, dando um retorno para o povo e mostrando que seus
costumes e lendas eram dignos de registro e memória, de tornarem-se arte.
Na sua última década em vida Cascaes, já
como diretor do museu de antropologia da UFSC, teve a ajuda de Gelci José
Coelho, o Peninha, artista e estudante de história naquela universidade.
Peninha não só trabalhou incessantemente, mesmo após a morte e Cascaes, em
divulgar e preservar toda a sua obra, mas também colaborou com a criação de
toda uma série de lendas e causos, mantendo em paralelo toda uma produção
própria muito rica de desenhos e textos.
Muitas dessas lendas e costumes vieram, a
princípio, com os colonos imigrantes do Arquipélago dos Açores, em Portugal.
Mas aqui ganharam características próprias e se mesclaram com muitas outras
tradições. Tem uma anedota antiga, que dizem ser verídica, de que quando
Cascaes primeiro visitou os Açores lá ficou surpreso por não existir o folguedo
do Boi-de-Mamão. Apesar de certa herança prévia a cultura “desterrada” sempre se
desenvolve de forma única. O Culto ao Boi, como figura de fertilidade na
narrativa de morte e renascimento, está presente em muitas culturas antigas. As
danças e o auto do Boi-de-Mamão tem também muita influência da cultura trazida
pelos negros escravizados, assim como os índios que aqui foram subjugados. Lendas
e criaturas míticas como o Boitatá, corruptela do M’boitata, a “Cobra de Fogo”
Tupi, são o fruto desse desenvolvimento único e de mistura de tradições a
“fórceps”.
Apesar dos contos e ilustrações de bruxas serem apenas uma parte, e nem é a maior no trabalho de Cascaes, foi ela que ganhou maior projeção pelo seu caráter fantástico. Certamente Peninha, sabendo do apelo dessas histórias, foi um dos grandes responsáveis por esse fato. Eu não encaro as criaturas místicas dos desenhos e contos legados por Cascaes apenas como expressão e registro de uma cultura, o que já seria bastante, mas também como um meio dele falar de outros temas do real: metáforas para além. Creio que ele percebia as bruxas como materializações de incompreensões, medos, recalques, entre outros conflitos que as pessoas vivenciavam.
Para quem se dispor a olhar na internet imagens das obras de Cascaes, vai logo reconhecer várias criaturas que também estão presentes no jogo, como as vassouras embruxadas, o Balanço Bruxólico, entre outras, além das demais que criei partindo deste rico e fantástico universo.
As criaturas fadóricas em Bruxólico são essa homenagem a Cascaes, mas também um motivo pra falar e mostrar o meu olhar sobre nossa cultura e o lugar onde vivo, minha visão deste mundo e de seus problemas. Por isso retrato lugares como algumas das trilhas antigas da cidade, como do Gravata ou do Sertão do Assopro, que eu já percorri acompanhando minha esposa, que adora o contato com a natureza e apreciação das belezas naturais das paisagens. Nos últimos três anos ela pacientemente me ouviu contar sobre todas as minhas ideias para o jogo, enquanto era inspirado pela mata nativa e informações a respeito destes antigos caminhos. Acho que criei mais da metade das fases do jogo enquanto caminhávamos pelas trilhas.
O Projeto de fazer peças em cerâmicas do “Bestiário da Ilha” não se realizou, sendo que produzi apenas uma peça, um boitatá, que ficou inacabado até 2022, quando o finalizei e dei de presente ao Peninha. Mas nos meus planos as criaturas não seriam apenas as tradicionais daqui, como a Bernunça, mas também outras bruxas que podiam parodiar políticos e outras celebridades infames. Eu só me dei conta ao escrever este texto que, no fundo, talvez até de forma inconsciente, eu tenha realizado o tal Bestiário dentro do vídeo jogo, o que ficou mais claro ao montar o manual de Instruções.
Quanto às escolhas estéticas do jogo eu
preciso pontuar algumas coisas. Lá se vão quase 10 anos criando vídeo game
autoral. E ultimamente tenho trabalhado muito dentro as limitações destes
computadores de 8-Bits dos anos 80. Eu ainda me espanto com o quanto as
limitações de memória nos obrigam a vir com soluções criativas, e o quanto isso
também me dá novas ideias para a criação estética geral do jogo.
Em outros momentos já falei bastante sobre
as limitações técnicas e limites de memória desses computadores, mais ainda da “Engine”
que utilizo, o MPAGD. O principal é que sigo utilizando estes grandes blocos de
8x8 pixels para desenhar os cenários e as ilustrações que estão no jogo e no
livro ilustrado. Eu me esforço para fazer a pixel arte com cabeça de esteta,
sempre considerando a imagem como um todo e não só seus elementos individuais.
Na busca de tornar os cenários “vivos” e
detalhados escolhi um visual de "falso 3D". Assim criei um efeito que
impressiona visualmente e também contribui para o “level design”: deixo claro
para o jogador o que é cenário de fundo e o que são elementos com os quais ele
colide e interage, como chão, plataformas e paredes e inimigos.
Na tentativa de superar os limites técnicos
da máquina, da Engine, e meus, eu que sou um artista me metendo a programar, e
não um programador, tratei de criar formas de simular a rolagem de tela (o
famoso scroll, ou movimento do ecrã), me utilizando de sprites que estão
programados e condicionados a uma variável que liga ou desliga seu movimento.
Apesar da limitação máxima de 12 sprites na tela foi possível manejar os
recursos e ter o jogador, seus ataques, e os inimigos junto com tais efeitos em
movimento em simultâneo.
Uma coisa especial e digna de nota aqui é
sobre a ideia de utilizar dos áudios gravados na fita. Como o espaço de memória
é muito limitado eu não podia me dar ao luxo de colocar uma grande quantidade de
narrativa em texto dentro do programa do jogo. Isso era um impasse, pois a
narrativa é importante e um diferencial do jogo. Eu, que não cresci jogando
jogos em fita k7, me peguei a pensar se era possível ter áudios gravados nela
depois do programa do jogo e reproduzidos pelo micro computador, pois assim eu
teria um resultado legal: narrações das histórias em qualidade de áudio
analógico e economia de memória para incluir mais telas e chefes de fase.
Falei desta ideia para o Filipe Veiga, perguntei se era possível e se algum desenvolvedor do passado ou de agora tinha utilizado este recurso. Ele me apresentou então os jogos da Automata, e em especial sua obra prima, o jogo “Deus EX Machina”, que eu achei fantástico. Eu só consigo fazer um paralelo de um jogo tão inovador e espantoso com algo no estilo do filme “Another Brick on the Wall”, da banda Pink Floyd. Tive a certeza de que eu queria e precisava utilizar este recurso no Bruxólico, não de forma experimental ou tão bem executada como o pessoal da Automata, até por que não tenho ainda os meios de programar sincronia entre ação do meu jogo com os áudios de forma complexa, mas fazendo um uso criativo que agregasse à experiência do jogador.
Essas foram algumas das principais
inspirações e reflexões desses 8 meses de produção do Bruxólico, um jogo que na
verdade vem sendo gestado a bem mais tempo. Como em trabalhos anteriores ele é
a síntese de muitas ideias e objetivos que eu tenho me imposto ao criar meus
jogos. Desde o conceito de não encerrar a criação apenas no jogo, mas expandir
para outras linguagens estéticas, até a de estar sempre em diálogo com a
cultura, com as produções artísticas que tenho acesso em variadas linguagens,
sejam elas dos quadrinhos, cinema, literatura, artes plásticas, etc, e de
diferentes épocas.
Bruxólico é muito especial pra mim por
conta de todo o seu valor afetivo, da obra de Cascaes, e da geração de artistas
que lhe deu continuidade, como o Peninha e meus pais. Espero que você também
encontre o seu próprio sentido ao jogar, ler, escutar, e ver as imagens de todo
esse longo trabalho. Muito obrigado por voar comigo até aqui.
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